A vida existe para ser superada. Este parece ser o mote de muitos diretores quando pensam em realizar um filme. Quem nunca teve vontade de saber como seria o mundo em outros cenários, em situações extremas com o seu quê de fantasioso, como guerras, fome, realidade virtual, isolamento social? O cinema foi profético muitas vezes ao retratar com décadas de antecedência como poderia vir a ser o futuro que, conforme se pode observar em muitos casos, já passou faz tempo. É bastante provável que os filmes que a Bula destaca hoje se tornem completamente obsoletos daqui a 30, 20, dez anos, mas, enquanto isso não acontece, assista-os e viva para comparar. Assuntos tão díspares, a exemplo dos abordados em “Upgrade” (2019), de Leigh Whannell, ou “A Chegada” (2016), de Denis Villeneuve, balançam nossas convicções sobre a vida real e a almejável — ou nem tão almejável assim. E o cinema, como ninguém, sabe motivar em nós essas sensações. Os filmes são citados do mais novo para o mais antigo, não seguem critérios de classificação e, vale lembrar, estão todos disponíveis na Netflix.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Planeta Terra, 2092. A humanidade tenta resistir num mundo inóspito e quase mortífero, em que o ar é rarefeito e o solo praticamente infértil. Água, muito pouca. Quem tem dinheiro sobrevive com alguma facilidade num território administrado pelo megaempresário James Sullivan, vivido pelo ator Richard Armitage, da trilogia “O Hobbit”, cujas ambições não têm limites. Sullivan planeja levar seus inquilinos a Marte, tornado habitável graças à introdução de uma “superárvore”. Aos demais, os pobres (quase todo o contingente mundial), sobram duas alternativas: a miséria absoluta num ambiente imundo ou trabalhar por uma ninharia nas bases espaciais ou como varredores do espaço, responsáveis por recolher as toneladas de detritos lançados por naves e satélites, uma espécie de catadores de lata hi-tech.
Uma mulher acorda em uma cápsula criogênica, sem ter a menor ideia do que está fazendo naquele lugar. Completamente isolada do mundo, contando apenas com um dispositivo chamado MILO, para sobreviver ela precisa buscar no que resta de sua memória um jeito de se libertar antes que o oxigênio acabe. A história principia como um thriller de ficção científica, mas logo se mostra uma alegoria ricamente construída pelo diretor Alexandre Aja e a roteirista Christie LeBlanc de como está sendo a vida de muita gente ao longo da pandemia de covid-19, um cenário de mudanças indesejadas, incerteza, desespero e verdadeiro caos, em que nos vimos todos obrigados a repensar nossas prioridades a fim de não perder o fôlego.
O cinema asiático vem conseguindo quebrar paradigmas e preconceitos e adquire cada vez mais proeminência, em todos os gêneros, dando corpo às tramas mais complexas e trazendo novos olhares sobre questões que se imaginava emboloradas — e faz tudo isso com competência e originalidade, muitas vezes misturando uma série de linguagens fílmicas numa trama só. Em “The Soul”, o assassinato de um grande empresário dá azo a uma investigação minuciosa por parte do promotor Liang Wenchao e sua esposa, a agente A Bao. Aos poucos, eles vão decifrando os muitos mistérios do caso, como o de que todos os que eram próximos ao morto apresentavam razões muito sólidas para acabar com ele. A partir de então, percebem que estão em grande perigo se não descobrirem logo a identidade do criminoso.
No enredo de “Amor e Monstros” se confirma a quase sempre presente tendência de extinção do gênero humano no cinema de ficção científica. Aqui, 95% da população mundial foi eliminada por centopeias gigantes, caracóis titânicos e lesmas quilométricas, originados devido a uma mutação genética depois que um asteroide explode na superfície terrestre. O que sobrou da humanidade tem de se conformar em viver enclausurada em bunkers, a salvo, mas completamente oprimida também. O jovem Joel, morador de um desses espaços, é o responsável pela manutenção da área. Ao conseguir estabelecer contato via rádio com uma antiga namorada, Aimee, que habita uma colônia a 135 km de distância, Joel decide se aventurar atrás dela, mesmo sabendo que pode não sobreviver fora do isolamento.
“O Céu da Meia-Noite” apresenta a história de Augustine, cientista à beira da morte que decide permanecer no mundo enquanto os demais terráqueos migram para outros pontos da galáxia, a fim de fugir do risco de contaminação radiativa. Augustine acompanha um projeto de exoplanetas, comunidades de colonização fora da Terra, na esperança de que os estudos apontem novas possibilidades de lar para quem saiu do planeta. Ele se depara com duas surpresas: uma criança abandonada no Ártico, que a partir daí passa a fazer parte de seu cotidiano solitário e entediante, e a descoberta de uma equipe de astronautas que regressa de Éter, a lua de Júpiter, com boas notícias. Contudo, Sully, a comandante da missão, não consegue entrar em contato com a Terra porque pensa que não há mais ninguém por aqui.
Assim como em “2001 — Uma Odisseia no Espaço” (1968), de Stanley Kubrick, e “Metrópolis” (1927), de Fritz Lang, “I Am Mother” usa a ficção científica para escancarar problemas de classe e conflitos íntimos da natureza humana. Mãe, um dispositivo inteligente, é responsável pela criação de uma adolescente, Filha, designada para recolonizar a Terra depois que catástrofes dizimaram a população mundial. As duas mantém um bom relacionamento, até que uma mulher desconhecida consegue penetrar na hermética unidade de repovoamento dando notícias alarmantes. Desse momento em diante, Filha começa a elaborar uma série de questionamentos sobre a espécie humana e sua própria vida.
Grey (Logan Marshall-Green) e sua esposa sofrem um ataque aparentemente gratuito. Ele fica tetraplégico e a mulher acaba morrendo. De luto, perdido, atônito, sem saber o que pensar e completamente imóvel a partir do pescoço, ele concorda em se tornar cobaia de uma terapia experimental que implica em instalar um microchip capaz de devolver-lhe os movimentos. Uma vez feita a cirurgia, Grey vai aos poucos se reabilitando. Com a mobilidade em sua plenitude outra vez e sedento por vingança — o único sentimento capaz de fazê-lo esquecer um pouco todo o sofrimento pelo qual teve de passar —, Grey começa a elaborar uma estratégia a fim de liquidar quem arruinou sua vida.
No segundo longa de Charlie McDowell, estão em tela os dramas de uma sociedade perdida, cansada e obcecada por algum alento, que poderia vir do aperfeiçoamento da tecnologia e dos programas de inteligência artificial. A possibilidade concreta de prolongamento da vida após a morte, aspiração maior de indivíduos patologicamente insatisfeitos e frustrados, é comprovada pelo cientista Thomas Harber (Robert Redford) e leva muita gente a cometer suicídio. Ele não se acha o responsável nem parece sentir remorso pelos milhões de mortos e quer divulgar ainda mais sua grande descoberta. Entretanto, uma entrevista ao vivo o convence de que seu experimento carece de ajustes.
Um futuro promissor parece se vislumbrar para o organismo alienígena Calvin, protagonista do longa. Como o personagem Hugh Derry frisa numa das cenas, Calvin é composto por formações celulares altamente complexas que desempenham as funções simultâneas de olho, músculo e cérebro. Seu processo evolutivo consiste em, de uma estrutura mitocondrial fortificada, avançar rapidamente algumas etapas até se transformar em algo como uma ameba assassina que cresce fagocitando matéria orgânica, inclusive seres humanos. Entretanto, o estágio evolutivo final de Calvin desaponta por ser o clichê do que se assiste em filmes de terror com seres extraterrestres: tentáculos de um lado, uma secreção meio pegajosa e uma cabeça que lembra a de um inseto.
Extraterrestres descem a diversos pontos da Terra sem dizer exatamente o que pretendem, mas com propósitos nada altruístas. É aí que entra a linguista Louise Banks (Amy Adams), desafiada a decifrar as mensagens muito sutis — e, se verá depois, ameaçadoras — dos alienígenas. Em “A Chegada”, um suspense psicológico não muito distante da ficção científica que o consagrou, o franco-canadense Denis Villeneuve imprime sua marca com uma produção muito bem cuidada, elogiada pela crítica, mas preterida pelo público por ser um belo enredo, mas cabeça demais. Se você não tiver medo de filmes que apresentam temas a princípio recorrentes, mas com uma abordagem inteiramente sofisticada e original, não deixe de assistir a essa joia rara do bom sci-fi.