Tem sempre um babaca cuspindo ‘sinceridade’ por aí

Tem sempre um babaca cuspindo ‘sinceridade’ por aí

“Desculpe a sinceridade, mas…”, adiantava a criatura perfeita ao primeiro interlocutor que encontrasse. Encantada com o som da própria voz, a inteligência de suas observações, o diâmetro de sua cintura, o brilho de seus dentes e a maciez de suas roupas de baixo, dizia na lata:

“… você devia se vestir melhor!”

A vida inteira havia sido assim. Ajeitando o cabelo, buscava com os olhos uma vitrine, uma vidraça, uma panela areada, um espelho onde mirar o próprio rosto enquanto cuspia mais um de seus julgamentos a sangue frio, sem anestesia, na cara de um dos seus tantos alvos.

E diante de um ouvinte incrédulo, surpreso e magoado pela crítica repentina, o ser impecável deitava a cabeça de lado e ensaiava um sorriso superior de quem deseja o bem do outro, o resgate dos micos leões, a salvação dos golfinhos e das baleias, das lagartixas e abelhas, a redenção da humanidade. Mas no fundo se refestelava mesmo era com a fantasia de ser alguém acima daqueles a quem depreciava com ar de brandura.

Seus discursos preconceituosos começavam sempre com um dissimulado “desculpe a sinceridade…” e acabavam desaguando em afrontas proferidas com falso desprendimento.

“Você parece mais velha.”

“Quem não foi a Paris não sabe o que é gastronomia. Você nunca foi, né?”

“Já escolhi não ter filhos porque não suporto criança chorando. Esse seu bebê incomoda qualquer um.”

“Querida, você devia repensar seus sapatos.”

“Conhece cirurgia de redução de peso?”

“Desculpe a sinceridade, mas…”

E assim, a cada crítica forçada, cada opinião venenosa, pisava com truculência disfarçada as cabeças de suas vítimas, festejando sua “sinceridade” como uma qualidade incomum, quando na verdade era nada senão a mais rasa e cega grosseria.

Se escutasse um súbito “não lhe perguntei nada” ou qualquer outra merecida resposta irritada, dava de ombros, fingia não ter ouvido ou tão somente saía por aí desqualificando o amotinado como “pessoa ignorante, incapaz de ouvir a verdade, avessa a críticas, desqualificada” e outros desaforos.

Um dia, recebeu um convite especial de remetente desconhecido. O convite não dizia nada mas devia ser uma festa, um evento internacional, lançamento, vernissage. Não havia identificação nenhuma, mas decerto era coisa fina. Um papel cartão muito caro, letras impressas em ouro e assinatura ilegível em vermelho. Uma ocasião grandiosa “para pessoas especiais”. Um carro iria buscá-lo em casa no horário marcado. Dito e feito — ou quase. Com dois minutos de atraso, uma elegante limusine parava diante de sua porta. A criatura perfeita reclamou da demora.

“Atrasados??? Na Europa isso dá guilhotina! Desculpe a sinceridade, mas…”

Ao volante, uma dama vestindo negro ignorou o protesto e tocou o carro em frente. O ser irretocável se deixou entorpecer pelo luxo e dormiu sobre os bancos de couro. Quando acordou, já estava na festa e o anfitrião desconhecido o recebia à porta.

— Bem-vindo.
— Obrigado.

Mas que cheiro era aquele? Um aroma forte de sangue, lixo e algum produto químico preenchia-lhe as narinas e incendiava-lhe os pulmões. Ele não podia deixar passar e disse a verdade a seu anfitrião:

— Desculpe a sinceridade, mas vocês podiam ter escolhido melhor o lugar. Isso aqui fede a fruta podre e chuveiro queimado!

E a resposta veio imediata.

— Isso é cheiro de enxofre. Desculpe a sinceridade, mas você morreu e está no inferno.

Depois do tempo infinito que dura um instante de negação, após uma fila de perguntas respondidas com as assustadoras gargalhadas de um milhão de demônios, a alma primorosa se deu conta de que passaria a eternidade queimando no calor das trevas, respirou fundo e perguntou a seu anfitrião misterioso:

— Mas qual será o meu papel aqui?

— Você será um eterno rolo de papel higiênico.

— Eu não aceito!

— Você não tem opção. E desculpe a sinceridade, mas a sua conversa fútil me deu dor de barriga.

André J. Gomes

É professor e publicitário.