“Como Ler os Russos” (Todavia, 300 páginas), do jornalista e tradutor Irineu Franco Perpetuo, de 50 anos, não é um livro tão-somente para iniciantes. Aqueles que apreciam a literatura russa, mesmo se têm uma formação mais ampla e sofisticada, ganharão com a leitura da obra. Porque, além de mostrar o que de melhor se escreveu na língua de Aleksandr Serguêievitch Púchkin (1799-1837 — viveu 37 anos) — o Shakespeare ou Goethe da Rússia —, o autor apresenta as ideias de críticos categorizados, como Aurora Fornoni Bernardini, Boris Schnaiderman, Bruno Gomide, Dmítri Býkov, George Steiner, Georges Nivat, Katerina Clark (faz uma reavaliação original da literatura de Mikhail Chólokhov, autor do romance “O Don Silencioso”), James H. Billington, Lucas Simone, Mark Lipovetsky, Roman Jakobson, Vissarion Bielínski, Vladímir Nabokov, entre outros.
Vai se comentar, a seguir, o capítulo “Degelo, gulag, emigração e clandestinidade”. Mas, antes, vamos a uma zapeada sobre os inícios da literatura russa, examinados no capítulo “Séculos de formação”.
Há um consenso de que Púchkin é “o pai fundador” da literatura russa. Vladímir Nabókov escreveu que “a característica muitíssimo cômoda da prosa russa é que ela cabe por inteiro na ânfora de um único século” — o 19. Mas há autores anteriores ao autor de “Ievguêni Oniéguin”, inventivo romance em versos.
Mikhail Vassílievitch Lomonóssov, criador da Universidade de Moscou, era cientista e poeta. “Escreveu a primeira gramática e a primeira retórica da língua russa.”
Gavrila Derjávin (1743-1816) é apontado como “o maior poeta do século [na verdade, viveu 57 anos no século 18 e dezesseis anos no século 19], um dos maiores e mais originais de todos os poetas russos”. Joseph Brodsky o comparou ao poeta inglês John Donne.
As fábulas de Ivan Krylóv (1769-1844) eram “imensamente populares na Rússia” e ganharam tradução de Tatiana Belinky para o português.
Aleksandr Radíschev (1749-1802) escreveu um libelo contra a servidão, “Viagem de São Petersburgo a Moscou” (1790) , e Catarina, a Grande não titubeou e o mandou para o degredo siberiano.
Denis Fonvízin (1744-1792) escreveu “‘O Menor’, uma das primeiras obras-primas da literatura secular da Rússia, e seu ‘primeiro drama de sátira social’”, assinala Billington. “‘O Menor’ foi ‘o primeiro drama russo a ser traduzido e encenado no Ocidente”. Em “Ievguêni Oniéguin”, Púchkin o louva como “alma libertária”. Bielínski também o apreciava.
Nikolai Karamzin (1766-1826) se tornou conhecido pelo conto “Pobre Liza” (1792) e pela “História do Estado Russo”. “Pobre Liza”, traduzido por Natalia Marcelli de Carvalho e Fátima Bianchi, pode ser lido no livro “Nova Antologia do Conto Russo — 1792-1998” (Editora 34, 646 páginas), organizado por Bruno Barretto Gomide.
Em seguida, claro, surgem Púchkin e Nikolai Gógol (1809-1852) — que, assim como Liev Tolstói, Fiódor Dostoiévski, Turguêniev e Tchékhov, não serão examinados. O prazer fica para os leitores do livro de Irineu Franco.
Boris Pasternak e Vassíli Grossman
Ióssif Stálin, o ditador sanguinário de bigodes de barata (de acordo com o poema de Óssip Mandelstam), morreu em 1953, o que permitiu uma maior abertura política e cultural, aos menos por alguns anos — até a ascensão de Leonid Bréjnev, que reabilitou (como se fosse possível) o estadista que contribuiu, de maneira decisiva, para a vitória dos Aliados contra o nazismo da Alemanha de Adolf Hitler, entre 1941 e 1945.
Sob Stálin, prevaleceu o realismo socialista, que Andrei Siniávski, citado por Ievguêni Dobrenko, apontou como “‘meia-arte meio-classicista”, que nem é muito socialista, e de realismo não tem nada”. Com Nikita Khruschov, o stalinista que tentou “matar” o stalinismo, a partir de 1953, sobretudo depois de 1956, quando divulgou o relatório que levou à desestalinização, interna e global, a literatura ganhou um sopro de vida.
“Degelo” é título de um romance de Iliá Ehrenburg (1891-1967) e a palavra deu nome à abertura. Em parceria com Vassíli Grossman (1905-64), Ehrenburg editou o “Livro Negro”, um documento a respeito do massacre dos judeus na Segunda Guerra Mundial. A obra acabou vetada por Stálin, antissemita, e seus acólitos. Só foi publicada na Rússia em 2015.
Vassíli Grossman era um jornalista notável que se revelou um escritor brilhante. “O Inferno de Treblinka”, de 1944, documentou, pioneiramente, a tragédia de um dos mais letais campos de extermínio dos alemães, em território polonês. A batalha de Stalingrado é o mote de seus romances “Por uma Causa Justa” e “Vida e Destino”. “É um vasto livro [um é a continuação do outro] em que se tratam com a maior franqueza problemas candentes da vida russa, inclusive o antissemitismo, preocupação constante do autor”, anota Boris Schnaiderman. A mãe do escritor, judia, foi assassinada pelos nazistas.
“Por uma Causa Justa” foi publicado e fez sucesso. Mas “Vida e Destino” foi apreendido. “Em fevereiro de 1961, três oficiais do KGB foram ao apartamento de Grossman, confiscando o texto datilografado e tudo relacionado a ‘Vida e Destino’, de manuscritos e esboços a papel-carbono e fitas de máquina de escrever”.
Mikhail Súslov recebeu Vassíli Grossman, a pedido de Khruschov, e disse sobre “Vida e Destino”: “Talvez ele seja publicado dentro de uns duzentos, trezentos anos”. Em 1964, o escritor morreu, e sem ver sua obra publicada.
Mas havia uma outra cópia de “Vida e Destino”, que, microfilmada com o apoio do físico nuclear dissidente Andrei Sákharov, saiu em livro na Suíça, em 1980, para suspanto da ditadura comunista. Na União Soviética, com Mikhail Gorbatchov no poder, a obra foi finalmente publicada, em 1988. O livro saiu no Brasil, em 2014, pela Editora Alfaguara, com tradução de Irineu Franco Perpetuo, autor de ótimo prefácio,
O governo comunista jogou pesado contra Grossman porque não queria a repetição da história do romance “Doutor Jivago” (1955), de Boris Pasternak (cuja poesia merece ser publicada no Brasil). O livro foi publicado na Itália, graças ao empenho do editor Giangiacomo Feltrinelli, em 1957 — o que irritou os dirigentes soviéticos, que haviam proibido sua edição.
Pasternak ganhou o Nobel de Literatura, em 1958, mas o regime totalitário o impediu de recebê-lo. “O autor foi expulso da União de Escritores”, relata Irineu Franco. O romance foi visto como um ataque ao comunismo, a literatura em si não parecia posta em questão. Anna Akhmátova, Varlam Chalámov e Czeslaw Milosz não se empolgaram com o livro, visto como “um fracasso artístico”. Dmítri Bykov discordou: a obra é “absolutamente modernista” e deve ser percebida “como um conto mágico”.
No Brasil, Pasternak é mais conhecido pelo romance “Doutor Jivago” (traduzido por Sonia Branco, a prosa, e Aurora Fornoni Bernardini, a poesia). Seu forte é, porém, a poesia. “Pasternak esteve próximo do grupo dos cubofuturistas, mas a sua poesia logo se diferençou pela aliança entre as conquistas mais arrojadas das escolas de vanguarda e o verso tradicional russo”, anota Boris Schnaiderman.
Soljenítsyn é o Homero soviético
Em 1973, Aleksandr Soljenístyn (1918-2008) balançou a União Soviética e comoveu o mundo com “Arquipélago Gulag” (Carambaia, 704 páginas, tradução de Lucas Simone). Georges Nivat nota que Pasternak e Soljenítsyn “têm em comum um mesmo impulso moral: denunciar a mentira como raiz do mal”. Preso em 1945, e enviado para campos de trabalho, acabou por ser reabilitado, em 1956, sob o Degelo.
Antes de “Arquipélago Gulag”, publicou, na União Soviética, em 1962, sob o beneplácito de Khruschov, a bela e dolorosa novela “Uma Dia na Vida de Ivan Deníssovitch”. “Essa novela deve ser obrigatoriamente lida e aprendida de cor por cada um dos 200 milhões da União Soviética”, disse a poeta Anna Akhmátova.
Em 1964, os stalinistas derrubaram Khruschov e o novo secretário-geral do Partido Comunista, Leonid Bréjnev, aumentou o controle da imprensa e da literatura. Soljenítsyn começa a ser perseguido e é finalmente expulso da União Soviética, em 1974. Um ano antes, havia sido premiado como o Prêmio Nobel de Literatura, que, na época, não pôde receber.
Boris Schnaiderman sublinha que, com “Arquipélago Gulag”, “era a primeira vez que se divulgava uma verdadeira história do gulag e se dava uma sinistra epopeia do acontecido, num livro patético e marcado pela emoção”.
“Arquipélago Gulag” contém uma mensagem antissoviética. Mas, segundo Katerina Clark, “muito de sua abordagem literária básica é no modo soviético. Embora os romances de Pasternak, Soljenítsyn e Grossman tenham sido lidos como contrapostos à tradição do realismo socialista, eles na verdade vêm dela, em graus variados, ou estão em diálogo com ela; nesse sentido, emergem de suas fronteiras”.
Chegou-se a sugerir que Soljenítsyn escrevia “mal”. Joseph Brodsky discordou: “Quando o homem está escrevendo sobre a aniquilação, ou sobre a liquidação, de 60 milhões de pessoas, não há espaço para falar sobre literatura, se é boa literatura ou não. No caso dele, a literatura é absorvida na história. O regime soviético tem seu Homero em Soljenítsyn”.
Varlam Chalámov e Joseph Brodsky
Os “Contos de Kolimá”, de Varlam Chalámov (1907-1982), ganharam tradução, em seis volumes, a Editora 34, com versões de qualidade — diretas do russo.
Chalámov viveu 20 anos em campos de concentração, e depois exilado, internamente. Os “Contos de Kolimá” saíram primeiro no Ocidente e, na União Soviética, só com a glásnost de Mikhail Gorbatchov, quando o autor já havia morrido. Boris Schnaiderman postula: “Diante do que ele narra, o Dostoiévski de ‘Recordações da Casa dos Mortos’ ‘parece um escritor bucólico’, segundo escreveu I. Sídorov”.
“Cada conto meu é uma bofetada no stalinismo e, como qualquer bofetada, possui leis de caráter puramente muscular”, disse Chalámov. Os contos são definidos pelo autor como “fixação excepcional de um estado excepcional. Não é prosa documental, mas prosa vivida como documento, sem as deturpações de ‘Recordações da Casa dos Mortos’. (…) Os ‘Contos de Kolimá’ estão fora da arte, mas todos eles possuem uma força ao mesmo tempo artística e documental”.
Além dos prosadores, que usavam a imaginação para recriar, de maneira vívida, as histórias reais — tão fortemente reais que pareciam irreais — do gulag, os poetas ocuparam amplo espaço, como Andrei Voznessênski (1933-2010), Ievguêni Ievtuchenko (1932-2017) e Bella Akhmadúlina (1937-2010).
Boris Schnaiderman escreveu que Ievtuchenko, “nos anos que se seguiram à morte de Stálin, tornou-se verdadeiro líder da juventude soviética inconformada com os vestígios do período stalinista. Soube frequentemente encontrar a nota justa, em relação a fatos e sentimentos ligados à realidade social e política”. “Babi Iar” (1961), denúncia do antissemitismo, “ganhou música do compositor” Dmítri Chostakóvitch “em sua ‘Sinfonia nº 13’ (1962)”.
O poeta Joseph Brodsky (1940-1996), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, em 1987, escolheu, “desde a juventude”, no dizer de Aurora Fornoni Bernardini, “o caminho da recusa”. Acusado até de “vadiagem”, e claro de ser antissoviético, foi “condenado a cinco anos de exílio interno”. A pena foi reduzida para 18 anos, depois de uma intervenção do filósofo francês Jean-Paul Sartre, a pedido de Ehrenburg.
“Numa sociedade onde tudo pertence ao Estado, tentar falar com sua própria voz etc. obviamente traz consequências”, pontuou Brodsky. Em 1972, sob pressão do governo, teve de deixar a União Soviética. Morou na Europa e radicou-se nos Estados Unidos.
A crítica Susan Sontag escreveu que Brodsky “insistia em que a ‘tarefa’ do poeta consistia em explorar a capacidade que tem a linguagem de viajar mais longe, mais depressa. Poesia, dizia ele, é pensamento acelerado”.
Serguei Dovlátov e Sacha Sokolov
A Editora Kalinka publicou no Brasil os romances “Parque Cultural”, “O Ofício” e “O Compromisso”, de Serguei Dovlátov (1941-1990). Como Brodsky, radicou-se nos Estados Unidos. Os dois morreram com menos de 60 anos.
Brodsky escreveu sobre Dovlátov: “Serioja era um estilista notável. Seus contos se sustentam no ritmo da frase; na cadência do discurso do autor. São escritos como versos: o enredo, neles, tem uma importância secundária, é apenas pretexto para o discurso. É antes canto que narrativa”.
O crítico Ígor Sukhikh disse que a palavra na prosa de Dovlátov (…) é mais um vidro transparente, através do qual podemos, seguindo o narrador, perscrutar o mundo”.
“Escola de Idiotas”, de Sacha Sokolov, é, segundo Wolfgang Kayser, “a obra mais surrealista da literatura russa moderna”. Boris Schnaiderman assinala que “Sokolov cria um relato alucinado em que o cotidiano soviético e o fantástico mais desenfreado se misturam e, com frequência, uma estória surge de ‘realidades gramaticais’ como ocorrência de homônimos. O romance provoca inversões temporais, funde o passado com o presente e instala o mitológico no cotidiano de uma cidade de veraneio”.
Andrei Bítov (1937-2018), segundo Boris Schnaiderman, “se caracteriza pela busca de formas de expressão novas”. Ele escreveu o romance “A Casa de Púchkin” (Record, 413 páginas, tradução de Paulo Bezerra).
“As manipulações estruturais de ‘Casa de Púchkin’, que a transformaram num texto essencialmente aberto, bem como os ensaios descritivos do autor e o recurso ao monólogo interior — jorros de consciência — colocam-na entre os marcos da prosa modernista”, afirma Solomon Vólkov. “Um romance brilhante, impiedoso, insolente”, sumarizou John Updike.
A obra-prima de Friedrich Gorenstein (1932-2002), “Salmo” (Kalinka, 408 páginas, tradução de Irineu Franco Perpetuo e Moissei Mountian), é um romance, “no qual, em uma narrativa salpicada de reflexões filosóficas e citações bíblicas, e combinando ‘a expressividade da parábola com doloroso naturalismo de detalhe’, ele ‘descreve o horror e devastação trazidas pela coletivização, a Segunda Guerra Mundial e a campanha antissemita do pós-guerra — tudo visto pelos olhos do Anticristo, Dan’” (os textos entre aspinhas são de Andrew Kahn).
Gorenstein é autor do roteiro do filme “Solaris”, do diretor Andrei Tarkóvski e baseado no livro do escritor polonês Stanislaw Lem.
Tradução da poesia de Púchkin no Brasil
A poesia de Aleksandr Púchkin (bisneto do africano Abraham Petróvitch Gannibal) é escassamente traduzida no Brasil. Irineu Franco Perpetuo menciona, numa nota, o livro “A Dama de Espadas — Prosa e Poemas” (Editora 34, 285 páginas, tradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher). Poucos poemas, por sinal.
Entretanto, num livro tão importante — um guia seguro e não dogmático —, há pelo menos uma lacuna (e o autor admite isto, porque sua obra não é uma enciclopédia): ao tratar de Púchkin, o fundador da literatura russa moderna, não se faz nenhuma citação às duas traduções de “Ievguêni Oniéguin”, romance em versos, brasileiras — publicadas com os títulos de “Eugênio Onêguin” (Ateliê Editorial, 219 páginas, tradução de Alípio Correia de Franca Neto e Elena Vássina) e “Eugênio Oneguin” (Record, 286 páginas, tradução de Dário Moreira de Castro Alves). As duas são traduções diretas do russo. Portugal também publicou sua versão direta do russo — “Eugénio Onéguin” (Relógio D’Água, 225 páginas, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra).
Nina Guerra e Filipe Guerra traduziram também, de Púchkin, “O Cavaleiro de Bronze e Outros Poemas” (Assírio & Alvim, 169 páginas).
O embaixador Dário Moreira relata, na introdução de sua tradução: “Um soneto do inconfidente Tomás Antônio Gonzaga, surgido em Paris em 1826-27, num órgão literário francês, foi traduzido por Púchkin para o russo”.
Lauro Machado Coelho traduziu, do russo, “Poesia Soviética” (Algol, 654 páginas). Há traduções de Daníil Ivánovitch Kharms, Ievtuchenko, Voznessênski. Akhmadúlina, Brodsky, entre outros. Irineu Franco não o cita. As traduções são de baixa qualidade? Não se sabe.
Dica pra Editora Todavia e Irineu Franco
O crítico literário americano Harold Bloom escreveu um livro “Como e Por que Ler” (Objetiva, 275 páginas, tradução de José Roberto O’Shea), no qual analisa, com entusiasmo convidativo, contos (de Tchékhov, Hemingway, Flannery O’Connor, Vladímir Nabokov, entre outros), poemas (de William Blake, Walt Whitman, Emily Dickinson etc.), romances (de Cervantes, Jane Austen, Dostoiévski, Proust, Thomas Mann, William Faulkner, Toni Morrison, Cormac McCarthy etc.) e peças teatrais.
Com seu amplo conhecimento, Irineu Franco poderia fazer o mesmo, mas apenas com obras de escritores russos.