Muito já se disse e se escreveu a respeito da famigerada “função da arte”. Há quem diga que a função da arte é educar, preparar o homem para o futuro, instigar no homem uma consciência de fazer parte de um todo, de um organismo maior que seu próprio corpo, que sua própria família, seu próprio círculo de amigos, sua cidade, seu país, quem sabe esperando que deixe de caber no próprio planeta. Por outro lado, muitos defendem que a função única da arte é precisamente essa, ser arte. A arte pela arte é arte ao quadrado e, em muitos casos, é muito mais producente quanto a fazer girar a roda da evolução. A vida é um mar proceloso que se atravessa a bordo de uma nau sem casco e é a arte quem pincela com um pouco de beleza essa travessia. A Bula elaborou uma lista com dez filmes cuja delicadeza do roteiro fazem a gente sonhar — e pensar, e sonhar outra vez. Estão incluídos sucessos, a exemplo de “A Menina e o Leão” (2018), do francês Gilles de Maistre, e alguns menos conhecidos, como “Lagaan: A Coragem de um Povo” (2001), do indiano Ashutosh Gowariker. Os títulos se sucedem a partir do ano de lançamento, do mais novo para o mais antigo, e não respeitam critérios classificatórios. Assista, sonhe acordado e reflita.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Sozinhos, sem quaisquer vínculos familiares e com alguns problemas sociais, os vizinhos Andy e Mike foram feitos um para o outro. Eles não sabem ao certo o que é a felicidade, mas felicidade para eles é comer pizza congelada todos os dias, assistir a filmes antigos de kung-fu, tentar decifrar enigmas bestas e, claro, praticar paddleton, um jogo inventado pelos dois. A vida nada empolgante desses amigos segue seu curso monótono, mas perene, até que Mike é diagnosticado com câncer no estômago e sente que não vai viver muito mais. A fim de preservar sua qualidade de vida e o pouco que lhe resta de sanidade mental, Mike toma uma decisão: prefere morrer o mais breve possível, enquanto ainda tem saúde, por meio do suicídio assistido, legalizado em alguns estados americanos.

A filha mais velha de uma família de cuidadores de animais londrina, recém-chegada a uma fazenda na África do Sul, se sente desolada sem os amigos. Até que Charlie, um filhote de leão-branco, aparece em sua vida e eles se tornam companheiros inseparáveis. À medida que cresce, Charlie vai se tornando uma presa fácil por sua docilidade e extremamente rentável graças à sua condição rara num país conhecido por fomentar a caça a animais selvagens, o que apavora a garota. “A Menina e o Leão” tem o trunfo de congregar a tradição da boa história infantil, à moda de Montaigne e dos Irmãos Grimm, e recursos técnicos de última geração, a fim de tecer um enredo que mesmo aparentemente batido, não deixa de encantar, como uma fábula high tech.

Osamu sustenta sua família nada convencional praticando pequenos furtos, no que é ajudado por seu filho. Ao fim de mais um dia de delinquências, se deparam com uma garotinha, aparentemente perdida. Eles relutam em acolher a menina, afinal, o dinheiro que conseguem quase não é suficiente, mas a mulher de Osamu resolve ficar com a pequena ao saber das condições em que ela vive. Essa família bandida parece feliz, até que um incidente vai revelar segredos que irão por à prova os laços que os mantém juntos. Ao abordar temas polêmicos como o de um clã inteiro que se entrega à marginalidade sem o menor drama de consciência, o filme já marca um golaço ao não se permitir patrulhar pelo politicamente correto e levantar questões complexas com humor e uma profundidade que nem todo mundo suporta.

Lila é uma cantora famosa que não pensava em subir aos palcos outra vez, mas se vê forçada a retomar a carreira por precisar de dinheiro. Pouco antes de sua reestreia, ela sofre um grave acidente e acorda com amnésia. Por isso, a empresária de Lila, Blanca, decide contratar Violeta, uma imitadora anônima da qual toma conhecimento ao assistir a um clipe. Violeta é a única que pode ensinar Lila a ser outra vez a grande diva que fora. “Quién te Cantará” não chega a ser um thriller típico, mas a narrativa é envolta por uma névoa de mistério; as duas protagonistas têm um carisma magnético, com a câmera e com os espectadores. Outro ponto alto do filme são as cenas em que Najwa Nimri, que vive Lila, interpreta as canções “Como um Animal” e “Procuro Olvidarte”.

“My Happy Family”, coprodução da Geórgia com a Alemanha, instala o espectador na sala de uma típica família tradicional do extremo Leste Europeu, patriarcal e conservadora. Entre eles vive Manana, cinquentona, sem voz, amargurada, oprimida pelo pai, marido e filhos. Ela tenta não enlouquecer em meio a tanta gente dividindo o mesmo espaço, e vai administrando os conflitos que irremediavelmente surgem. Até que resolve dar uma guinada radical, antes que seja tarde demais, e sai de casa, deixando para trás tudo o que tem e as referências sobre o que é a vida em sociedade. A seu favor, a imensa vontade de ser, enfim, feliz, com todos os percalços que essa decisão possa implicar.

Uma viúva solitária e insone decide convidar o vizinho, também viúvo e também insone, para dormir em sua casa. A proposta inusitada, que almeja dar aos dois a chance de uma noite de repouso, deixa o professor aposentado atônito a princípio, mas à medida que eles seguem com a empreitada, esses dois veteranos das dores da alma percebem que começa a florescer uma bela amizade. “Nossas Noites” certamente foi feito sob medida para Robert Redford e Jane Fonda, dois dos maiores expoentes da era de ouro do cinema. Os dois estrelaram dezenas de clássicos, foram premiados com alguns Oscars, contracenaram três vezes e arrebataram público e crítica, trabalhando ora separados, ora juntos, mas sempre apresentando um desempenho admirável.

Inspirado pela vida de seus pais, o ilustrador Raymond Briggs escreveu a graphic novel “Ethel e Ernest”, lançada em 1998. O diretor e roteirista Roger Mainwood achou o enredo — que fala de amor em tempos de ódio — tão bom que transpôs a história dos quadrinhos para a telona. O filme acompanha a trajetória dos pais de Briggs desde quando eles se conheceram, em 1928, até o ano em que morreram, em 1971. Ao passo que conta a história do casal, o filme dá ao público uma noção de como a sociedade britânica foi se transformando ao atravessar eventos decisivos como a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial e presenciar momentos marcantes da cultura, da política e da ciência, como a chegada da televisão, a ascensão do Partido Trabalhista ao poder e a conquista da lua.

Ao longo da Segunda Guerra Mundial a Turquia vai se esfacelando devido à fome e à mais absoluta falta de perspectiva de algum alento. Dois amigos, ambos poetas e tuberculosos há anos, se apaixonam por Suzan. Para resolver quem fica com ela, eles decidem que cada um escreverá um poema de amor e o entregará à garota, a quem cabe dar o veredicto sobre qual será o escolhido. O preterido deve admitir a derrota e ir embora. O longa do diretor turco Yilmaz Erdogan é um filme sobre amor, amizade, esperança, solidão, todos esses sentimentos à flor da pele durante um conflito armado. E ainda sobra muito espaço — afinal, são 2h18 — para uma crítica aos abismos sociais, intensificados num cenário de desordem, incertezas e medo.

O capitão britânico Andrew Russell anuncia que a cobrança do lagaan, o imposto local, será dobrada, o que gera a revolta da população de uma cidadezinha indiana. Como resposta, o capitão os desafia a um jogo de críquete, que os colonos não conhecem, o que provoca mais burburinho e inquietação, tanto mais porque os indianos vão receber a insólita ajuda de Elizabeth, irmã do capitão Russell. A história tem como plot a luta entre oprimidos e opressores, que, claro, é vencida pelos oprimidos, ou seja, os indianos. Sua grande qualidade é abusar da sutileza ao eleger o críquete, um jogo de britânicos brancos e endinheirados, como sua metáfora mais expressiva, sem passagens de violência e guerra, clichês supremos do cinema de Hollywood. Uma história de coragem, definitivamente.

Uma das muitas qualidades do belo “Lances Inocentes” é abordar o crescente — e nada comum — interesse de um menino de sete anos, Josh Waitzkn, por xadrez. Josh se inspira na figura de Bobby Fischer, seu ídolo, que constata que o garoto é mesmo talentoso. No entanto, Fischer sabe que o xadrez exige muito e que um enxadrista profissional, para ser um campeão, tem de abdicar de programas com os amigos, passeios e namoros. O pai de Josh, um jornalista esportivo, a princípio não presta muita atenção à genialidade excêntrica do filho, mas quando se convence de que ele é mesmo um fenômeno, se divide entre enquadrá-lo nos limites da normalidade ou estimulá-lo a decolar de vez.