Filmes com mulheres como protagonistas são filmes de (ou para) mulheres? Nada mais simplório, preconceituoso, obsoleto e falso. Filmes com atrizes no papel principal são, quase sempre, envolventes, surpreendentes, carismáticos, e ainda sutis, enérgicos, perspicazes, inovadores. As mulheres sempre foram as infantes terribles do cinema, defendendo personagens que, a princípio, parecem tolos, pueris, previsíveis, mas que, pouco a pouco, botam as garras pintadas de fora, mostram muito bem a que vieram e, não raro, levam uma história inteira nas costas — em muitos casos, para não dizer na maioria deles, dirigidas por homens, que lhes deram essa oportunidade, justiça se lhes faça — e, de quebra, um Oscar. Mulheres seriam de fato avessas umas às outras? E a tal sororidade? Bem, essa é uma discussão que fica pra próxima. Para hoje, o que a Bula te entrega são dez filmes de mulheres, ops!, liderados pelo belo sexo que, se você ainda não viu, está marcando passo. Do cult do suspense “O Silêncio dos Inocentes” (1991), de Johnatan Demme, com Jodie Foster, a “Um Assunto de Mulheres”, de Claude Chabrol, com Isabelle Huppert, elas sobem no salto e deixam muito marmanjo no chinelo. As produções aparecem da mais recente para a mais antiga e não seguem um critério de avaliação.

A crise da quebra dos bancos nos Estados Unidos, em 2008, é retratada da forma mais pungente e divertida possível, bem ao estilo Woody Allen. “Blue Jasmine” (que poderia ser traduzido como “Jasmim Azul” ou “Jasmim Triste”) destrincha a sina de Jasmine, uma dondoca assumida, que gozava do melhor da vida enquanto era casada com o investidor Hal: compras, badalações, viagens pelo mundo. O problema é que o castelo cor-de-rosa de Jasmine está prestes a ruir: o esquema de fraudes de Hal é descoberto e ele é preso. Jasmine era a dona legal de todo o patrimônio, vai à falência e tem de levar as mãos aos céus por não ir em cana também. Sua única alternativa para recomeçar a vida é mudar-se para San Francisco e ir morar de favor com a irmã cafona, Ginger, esperando que dias melhores cheguem logo.

A primeira bailarina de uma companhia de dança, cheia de problemas e começando a envelhecer, já não consegue um bom desempenho no trabalho e precisa se se aposentar. Nina é escolhida para substituí-la, mas sua vida íntima também vai mal, muito por causa de sua relação com a mãe. Nina, começa a desenvolver transtornos psiquiátricos, tão obcecada se torna em atingir o ponto máximo de sua performance como protagonista no espetáculo “Cisne Negro”, uma adaptação do balé clássico “O Lago dos Cisnes”, de Tchaikovsky. Seus conflitos internos são estimulados pelo exigente diretor artístico do grupo, Thomas Leroy, que açula em Nina um perigoso potencial autodestrutivo, estimulando a rivalidade entre ela e sua protegeé, a lasciva e nada calculada Lilly.

Oito anos depois de despontar como o grande expoente do movimento Dogma 95, o dinamarquês Lars von Trier volta a atacar de iconoclasta com “Dogville”, no qual Grace, uma mulher aparentemente bondosa e que não desperta muito o interesse das pessoas, está em fuga, com um grupo de criminosos no seu rastro. Um morador do vilarejo, a Dogville do título, resolve acolhê-la e persuade os demais habitantes da cidadezinha a aceitá-la, até que se faça um plebiscito a fim de verificar se Grace deve ou não radicar-se ali. Em contrapartida, Grace auxilia a população em tarefas braçais, afinal eles também passaram a correr perigo. Dogville e seus cidadãos melhoram de vida, mas conforme Grace conhece melhor a verdadeira natureza da gente de Dogville, suas ilusões de ser feliz se desvanecem de uma vez.

Erika é uma séria e desinteressante professora de piano no Conservatório de Viena. Não fuma, não bebe, e, aos 40 anos, vive na casa da mãe. Para escapar do tédio massacrante de sua rotina, Erika frequenta cinemas pornôs. Tempos depois, ela começa a se envolver com Walter, um de seus alunos, dando vazão a seus instintos mais primitivos e reprimidos. Nessa simbiose entre Michael Haneke e Isabelle Huppert, fica evidente que Erika não tem capacidade de sustentar um relacionamento afetivo com quer que seja, até porque a convivência com a mãe é um tormento, para ambas. O que ela quer mesmo é se divertir praticando seus joguinhos de voyeurismo e sadomasoquismo com Walter.

Um trágico acidente em que morrem seu marido músico e sua filha faz com que a famosa ex-modelo Julie abdique de sua própria vida. Os velhos círculos sociais deixam de a interessar e aos poucos ela torna-se mais uma na multidão na sempre feérica Paris. Esse espectro da vida admirável que tivera até ali se dissipa ao reencontrar um amigo de juventude, músico igualmente famoso, e com ele dá continuidade ao trabalho de seu finado companheiro. “A Liberdade é Azul”, que inicia a trilogia de Kieślowski baseada no lema da Revolução Francesa, junto com “A Igualdade é Branca” e “A Fraternidade é Vermelha”, é carregada de simbolismo ao eleger para a liberdade o azul, que denota a tristeza, a apatia de Julie frente à reviravolta que lhe apresenta a vida, mas que pode adquirir tons mais luminosos.

A agente do FBI Clarice Starling é designada para uma insólita missão: encontrar um assassino que arranca a pele de suas vítimas. Starling começa suas averiguações procurando Hannibal Lecter, um médico-monstro enjaulado num manicômio judiciário sob a acusação de canibalismo. Trinta anos depois — o lançamento foi em pleno Dia dos Namorados nos Estados Unidos, 14 de fevereiro de 1991 —, esse clássico do thriller noir protagonizado por Anthony Hopkins e Jodie Foster, segue provocando frio na espinha do público, graças ao desempenho surpreendente de Hopkins, mas, claro, em grande medida também à originalidade e sutileza do trabalho de Foster, que, para a desolação de todos, não se interessou em participar das continuações da trama.

Marie, única responsável pelo sustento dos filhos, Mouche e Pierrot, já que o marido Paul é um inútil, aceita se dedicar ao ofício de aborteira em plena Segunda Guerra. O dinheiro entra com regularidade, mas quando ela começa a ter um caso com Lucien, seus crimes são denunciados por Paul. O governo francês acata as acusações para que Marie sirva de exemplo. Na cínica e insana lógica dos nazistas, Marie é uma facínora por não permitir que essas novas vidas venham à luz, não atentando para as pilhas de mortos que produziam todos os dias ao eliminar judeus, dissidentes políticos e qualquer outro que julgassem destoar do ideal eugenista de sociedade perfeita. Uma discussão atemporal sobre a urgência de se discutir temas tabus como o aborto, este filme não é um assunto de mulheres.

Marc volta de uma longa viagem e tudo o que quer é reencontrar sua esposa Anna e seu filho. No entanto, ao desembarcar em Berlim, Marc percebe que Anna parece outra pessoa. Anna apresenta um comportamento completamente estranho e o caso descamba para o divórcio. Tudo o leva a crer que Anna o traiu; contudo, a trama dá uma guinada e Marc percebe que vai precisar lidar com situações macabras. Neste filme, que mostra uma Isabelle Adjani no esplendor de sua beleza e talento, salta aos olhos a maneira sui generis como Żuławski aborda as vicissitudes da vida a dois, denotada nas cenas em que Anna vai apresentando sua outra face e revelando sua vontade de se tornar quem de fato é.

Nick Longhetti trabalha num estaleiro, vive exausto e, para piorar, Mabel, sua mulher, apresenta um quadro de constante desequilíbrio emocional, o que a leva à depressão. Os filhos do casal começam a se sentir afetados pelo estado de Mabel e só resta a Nick interná-la. A nova configuração da família o leva a ter de assumir o controle da casa, o que vai mexer definitivamente com suas convicções. No filme tudo é muito natural e os atores não têm receio de se expor. Acontecem alguns ruídos, algumas falhas de comunicação intencionais, em cenas em que a presença das crianças pouco se faz notar, o que não deixa de ser emblemático da fragilidade desse núcleo. O que confere ainda mais brilho ao gênio de Cassavetes e Gena Rowlands, que mantém o filme quente até o emocionante final.

Maria e Karin relembram seus casamentos e relações extraconjugais infelizes enquanto, com a criada Anna, assistem a irmã mais nova Agnes, com um câncer terminal. A empregada, cuja filha morreu ainda criança, é a única capaz de demonstrar algum interesse e algum afeto para com Agnes, tão distantes e autocentradas se tornaram suas irmãs, perdidas em suas próprias frustrações e remoendo velhas mágoas. “Gritos e Sussurros”, talvez seja, dos filmes bergmanianos, a tradução mais perfeita do que são as dores mais profundas da alma humana ao tocar em temas tão pouco táteis e sedutores como morte, doença, família, ressentimento. A aridez da história talvez seja mais bem absorvida graças ao abuso de cores quentes, com predomínio do vermelho, a cereja sobre o bolo nesse lauto banquete da sétima arte.