As civilizações ancestrais já eram pródigas em inventar e transmitir suas próprias histórias, primeiro ao redor de uma fogueira e, conforme se destacavam e adquiriam conhecimento acerca de novas técnicas, faziam seus registros nas paredes das cavernas. Esses desenhos demonstravam acontecimentos comezinhos, como a ordenha das vacas ou a colheita de um cereal, mas às vezes eventos inusitados e nada ordinários, a exemplo de cobras com duas cabeças ou cavalos alados. Tanto tempo depois, a natureza humana, irrequieta, não se cansou de pensar em meios de afrontar a fria realidade das coisas, felizmente. Saíram as cavernas, vieram os livros. A Bula compilou dez títulos com esse propósito, caso de “Medo e Delírio em Las Vegas” (1971), de Hunter S. Thompson, o papa do jornalismo gonzo, e o clássico “Se um Viajante Numa Noite de Inverno” (1979), de Italo Calvino. As indicações seguem a partir do ano da publicação original (da mais recente para a mais antiga) e não observam critérios de classificação. Pire!
“A Visita Cruel do Tempo” não respeita padrões cronológicos, cada capítulo tem um narrador e há partes em primeira, terceira e até segunda pessoa. Entre as tantas idas e vindas, fala-se de música, tecnologia, dramas e drogas, com o tempo no papel de senhor inexorável do homem. Este livro tem cara de disco dos anos 1970, o que se encaixa à perfeição ao enredo, cujo personagem principal, Bennie — outrora um garoto que como qualquer outro deles amava os Beatles e os Rolling Stones e integrava uma banda de rock que nunca emplacou — é um bem-sucedido produtor musical. Sasha atura Bennie; em compensação, pode contar com a prazerosa companhia do melhor amigo. A espiral de lances rápidos de “A Visita Cruel do Tempo” pode deixar alguns meio tontos, mas a viagem vale muito a pena.
O texto cortante, mas refinado, de Orhan Pamuk, Nobel de Literatura de 2006, retrata com frescor o paradoxo da Turquia moderna, que quer se deixar seduzir pelas influências da cultura ocidental, mas é sufocada pelo fundamentalismo islâmico, o que gera intolerância de ambos os lados. O poeta turco Kerim Alakusoglu, o Ka, volta a Istambul depois de doze anos exilado na Alemanha, por ocasião da morte da mãe. Contudo, quase toda a narrativa se concentra na cidadezinha de Kars, isolada por uma nevasca há três dias. Ka aproveita o confinamento forçado para escrever sobre os suicídios de jovens muçulmanas que se recusam a abdicar do véu, exigido pelo Corão e proibido nas escolas pelo governo turco, e se envolve involuntariamente num golpe motivado por conflitos raciais, políticos e étnicos.
Este romance de texto delicado do tcheco Milan Kundera é um convite à reflexão. O homem deve viver para sempre? Por quê? Pra quê? Kundera elucubra sobre a fixação do homem em ser imortal e sobre o desejo tão humano de controlar tudo, até a natureza — que só se deixa dominar quando lhe é conveniente. O livro, despretensioso, não quer defender nenhuma tese, apenas tece uma imagem, fantástica em toda a sua sutileza, de várias vidas imbricadas numa só. “A Imortalidade”, publicado em 1990, é um dos trabalhos de maior fôlego de Kundera: 334 páginas em capítulos curtos. O autor vivia no Ocidente à época da redação de “A Imortalidade”, autoexilado por desacreditar do comunismo, e, por óbvio, isso o influenciou ao longo da confecção dessa obra-prima do humanismo universal.
O jovem taxista Amuyaakar Ndooy, mora em Sambey Karang, uma aldeia no Senegal. A monotonia de sua vida só se quebra quando tem um tempo livre para fumar yamba, a maconha local, com os amigos. As páginas de “A Vida em Espiral” se tornam uma espécie de Google Maps, graças ao ofício de Ndooy: aldeolas, botequins, palácios, mesquitas, feiras, casas populares, nada escapa ao olhar atento desse taxista, que o autor aproveita muito bem. Abasse Ndione escancara discussões que nunca se encerram, como a de rapazes pobres da periferia serem seviciados e presos ao portar um baseado, ao passo que as autoridades fazem vista grossa se flagram uma pessoa endinheirada na mesma situação. Maconha, ou qualquer outra droga, não deveria ser consumida por ninguém. Ponto.
Os robôs que um dia foram criados para facilitar a vida do homem agora o ameaçam. As pessoas parecem imersas num estado de letargia perene, aprisionadas e mantidas vivas à custa de drogas e alguma diversão. Ninguém pensa, ninguém cria nada e nem há novas gerações nascendo. A humanidade — ou o que resta dela — está fadada a um ocaso melancólico e todo o conhecimento humano está prestes a se perder de vez. Um robô Tipo 9, último de sua linhagem, é uma máquina quase humana responsável por manter a ordem em Nova York, mas ele não aguenta mais a tarefa de zelar pelo bem-estar social de indivíduos que, a seu juízo, não merecem viver e arquiteta um plano mirabolante a fim de se livrar desse fardo: atirar-se do alto do Empire State Building, já que sua configuração não lhe permite se autodestruir.
“Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, ‘’Se um viajante numa noite de Inverno’. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo à sua volta se dissolva no indefinido.” Com esse inusitado convite, Calvino principia essa história, célebre pelo caráter experimental e, por essa razão, mote para uma cornucópia de teses acadêmicas. O primeiro capítulo disseca um ser sem forma definida que habita todo o mundo moderno: o leitor médio. O protagonista, o próprio leitor, começa sua jornada de maneira aleatória. Você busca o novo romance do escritor Italo Calvino em uma livraria qualquer, nada mais do que isso. Um livro, só um livro, de um autor que não conhece bem. Você não sabe, mas está prestes a fazer parte desse enredo fantástico. No papel principal.
Todo fã de livros de ficção-científica — principalmente se junta guerra no meio — está careca de conhecer Kurt Vonnegut e, claro, “Matadouro 5”, considerado um dos grandes clássicos do gênero. Billy Pilgrim, um sujeito absolutamente comum, passa por todas as situações estapafúrdias próprias de uma guerra, a exemplo do próprio autor, um sobrevivente da Segunda Guerra Mundial. Portanto, Vonnegut transportou da Alemanha dos anos 1940 muito do que reviveu na obra, o que deixa tudo com aquele irresistível sabor de verdade ainda mais pronunciado. Misturando num texto desabotoado ficção científica, piadas e pitadas matadoras de filosofia, Kurt Vonnegut falou da compulsão consumista, tão reveladora, da maldade humana e do nosso comodismo, que, por dicotômico que pareça, nos permite seguir vivendo.
O jornalismo literário de Gay Talese, Tom Wolfe, John Hersey e Truman Capote — talentosíssimos, mas um pouco dândis além da conta — nunca mais foi o mesmo depois do escracho de Hunter S. Thompson, o inventor de um modo muito peculiar de redigir reportagens se imiscuindo nelas, o jornalismo gonzo. Despachado para cobrir um off-road de motos para a “Rolling Stone”, Thompson (ou melhor, Raoul Duke) rasga a América ao lado de seu fiel advogado Oscar Acosta. Chapados, chegam a Las Vegas a bordo de um conversível envenenado, rock ‘n’ roll no último volume. Duke (isto é, Thompson), enviou à revista um calhamaço das anotações sobre “a aventura selvagem em busca do sonho americano”, e da frustração por não se encaixar nele. Sabiamente, em 1971, a revista publicou tudinho, dando à luz um clássico.
Charlie Gordon, um homem de 32 anos, tem uma deficiência intelectual grave. Médicos desenvolvem uma cirurgia capaz de aumentar o QI do paciente e ele é selecionado para ser a primeira pessoa a se submeter ao procedimento. Tudo corre bem e a inteligência de Charlie aumenta tanto que ele se torna um verdadeiro gênio, sendo considerado mais proficiente até que os médicos que o operaram. A partir de então, novas — e incômodas — percepções se anunciam na vida de Charlie, desde suas relações interpessoais até sobre o seu próprio papel no mundo. Em “Flores para Algernon”, Keyes apresenta ao leitor a bela epifania de um homem que encontra na fraqueza sua força, a mola propulsora para realizar seu sonho de ser um sujeito normal, que só quer ter o direito a ser inteligente e aprender.
Texto límpido de ideias turvas, “O Túnel” é uma travessia pelos lados mais obscuros e prosaicos do homem. Pensamentos monomaníacos de solidão, paixão, posse, crime, morte e redenção passam pela cabeça de Juan Pablo Castel, narrador-protagonista, que declara ao leitor ter matado Maria Iribarne. A partir daí, já se sabe do que trata a novela, mas nem de longe se pode desconfiar com convicção sobre por que ele cometeu o crime. De clara inspiração nietzschiana, Sabato apresenta personagens demasiado humanos e perscruta seus dramas na pele de um narrador cuja construção psicológica é irretocável. Castel se sente absoluta e irremediavelmente só no mundo — e está mesmo, até porque despreza o homem e não tem a menor vontade de mudar. Que atire a primeira pedra quem nunca se sentiu assim.