Vanderley apresentava um programa de entrevistas “culturais” no horário da madrugada, que dava traço de audiência — mais uma consideração da emissora à sua condição de repórter social decadente. Vanderley mantinha também o hábito de utilizar “literalmente” fora do contexto. “Estou literalmente cansado.” “O cabelo de nossa entrevistada está literalmente mais curto.” Isso inclusive sempre foi motivo de secreta chacota por parte da equipe do programa, dos técnicos à produção.
Ontem à noite, ao entrevistar um professor de português aposentado, Vanderley teve — na conversa em off que antecedia a entrevista — a atenção chamada pelo intelectual, que em voz baixa lhe corrigiu o uso do advérbio: “Significa ao pé da letra. Não é sinônimo de ‘realmente’. Serve para tirar de algum termo sua condição de metáfora. Se a palavra tem duplo sentido, o ‘literalmente’ vem demonstrar que o termo está sendo usado em seu conceito original, denotativo”. “Sei, sei, sei”, disse Vanderley, lacônico e constrangido, passando os dedos pelos cabelos avermelhados de henna.
A entrevista seguinte foi com um cientista maluco que tinha inventado um eletrodo a partir de água mineral. Uma faísca da engenhoca escapuliu, pegou na cortina do cenário, alastrou-se até o papel manteiga que cobria um dos refletores e que já estava superaquecido; o pequeno foco não pôde ser controlado e logo o estúdio estava em chamas. A porta por algum motivo não quis destrancar e o pânico irradiou-se tão rápido quanto as labaredas. Sem lembrar do número dos bombeiros, Vanderley só teve tempo de ligar de seu celular para a casa do produtor do programa e, em meio ao caos, um instante de autorrealização: utilizar corretamente o advérbio. A bateria do celular já acabando e ele só pôde gritar: “O programa está literalmente pegando fogo!”
A ligação caiu e o produtor voltou a dormir, satisfeito, imaginando que a audiência deveria estar reagindo.