De gatos, gatunos e víboras convertidas: o zoo(i)lógico brasileiro está cheio…

De gatos, gatunos e víboras convertidas: o zoo(i)lógico brasileiro está cheio…

Um clarão na página que acenda sua imaginação — eis o que pretendo continuar fazendo. Se você já pulou a barreira do título, entre mil manchetes mais picantes do seu dia-a-dia na internet, seja bem-vindo ao sanatório, desculpe, ao zoológico brasileiro da política.

A existência das espécies do dito zoológico começou a ser catalogada há muito tempo. Uma aprofundada pesquisa talvez nos leve de volta a Pero Vaz de Caminha, mas por outra, vamos retornar ao passado recente, ali por volta da época de Getúlio e dar a palavra ao profeta, poeta e humorista ítalo-brasileiro Carlos Alberto Salustri, o Trilussa.

Saiba que neste exato instante que me lês, alguém presta consultoria que leva à pilhagem contra o teu, o meu, o nosso suado dinheiro e contra a consciência do brasileiro. Alguém se candidata a manter as apostas altas no jogo-do-bicho brasileiro: o que dá na cabeça, não importa desde que o ganho seja alto.

E você, amado leitor, ainda que tenha assumido o direito ao título de leitor petulante, deve estar se perguntando: “— E eu, que tenho a ver com isso ?”

De fato e de ficção, não sei. Para decifrar e desenvolver esta crônica, tive e terás que pagar um preço. Não se assuste, porque é barato: ler uma fábula de Trilussa, escrita em 1922 com um título bem atual — O gato socialista assim contada:

“Um gato, conhecido socialista, no fundo, espertalhão matriculado, estava devorando um frango assado, na residência de um capitalista.

Eis então que outro Gato apareceu, na janela que dava para a área: — Amigo e companheiro também eu faço parte da classe proletária!

Melhor do que ninguém, conheço as tuas ideias. Estou mais que certo, pois, de que dividirás o frango em duas partes, uma para cada um de nós dois!

— Vá andando, resmunga o reformista, nada divido seja com quem for, em jejum, sou de fato socialista, mas, quando como, sou conservador.”

Trilussa, poeta-fabulista, sabia que em tempos bicudos, o humor é saída e cura para os desvios de conduta.

Ele próprio fora socialista, o que não impediu de se bater contra todo tipo de autoritarismo e de maus hábitos e costumes: contra seus colegas socialistas, contra os fascistas, os comunistas, os liberais ou conservadores… o mau padre, o mau juiz… e contra os males da razão, as loucuras públicas e privadas. Enfim, Trilussa é bom zootécnico dos males que os filhos de Adão e Eva perpetram no mundo desde o exílio do Éden — agora sob novos holofotes.

Com seu humor, Trilussa criou esse zoológico, onde os bichos são protagonistas de fábulas que desvelam e desvendam os maus hábitos e os desvios, as torpes negociações, as falcatruas e negócios escusos, quase sempre em nome de um ideal prontamente esquecido.

Dia desses, eu, cidadão do zoológico com os impostos em dia, segui entusiasmado uma multidão vestida de amarelo, marchando, sob uma chuvinha fina, junto com outros contribuintes cansados de assistir calados ao solipsismo do politicamente correto, protestando contra os maus hábitos dos políticos.

Naquela procissão, entre um bater de panela e outro, pensei neste poema do Trilussa e na sua obra toda como a melhor metáfora da insanidade no zoo(i)lógico brasileiro.

É que com a fundação dessa espécie de coletivo de ‘gatos socialistas’, que mais se parecem com as aves de rapina, juntados que foram ao de progressistas, e até ditos conservadores, acima e ao centro do partido do governo, agora atacam em bando, com atitudes típicas da fauna de Trilussa.

E se a ação do bando nos surpreende com as artimanhas e a inventividade das formas e complexas fórmulas de saque, nada de novo sob o sol. Agarrados ao suculento osso dessa espécie de frango fino do poder, esses nem tão raros animais da fauna brasileira não querem largar o osso e continuam fiéis ao preceito do gato socialista: jamais divido o frango seja com quem for! Com uma ressalva: se do bando fizer parte, chega-se a um divisor comum da caça.

A cada dia, basta seu mal, a cada novo dia, uma nova caça — um novo escândalo político — que transmuta ratos em gatos socialistas e vice-versa. Uma picaria, uma velhacaria, uma maquiavelice, um embuste, uma maquinação, uma raposia, uma manha um conto do vigário, solapam, solapam-nos.

Na fábula do felino do poeta Trilussa — como de resto em toda fábula — os pobres bichos são a referência, típicos bodes expiatórios dos humanos, a servirem de espelho de nossos vícios públicos e privados. Velhos gatos gordos e bem fornidos afirmam com cândida placidez ser inocentes e querem continuar no governo dos bichos.

Se os gatos estão cada vez menos pingados em matéria de falcatruas, as cifras de assaltos ao erário passaram de alguns milhares, para milhões e, atualmente, chegam aos bilhões… Um butim à sorrelfa, diante da imobilidade e o pasmo silêncio do espectador do zoológico.

Tornaram-se mansos esses gatos de agora. Deles não podemos dizer que sejam gatos de armazém. Entre circunstantes do zoológico, próximo ao gato socialista estão outros tipos bem identificáveis pelo leitor petulante: a víbora convertida, o leão generoso, a lesma burra da vanglória nos tribunais, a raposa sincera, a lagartixa irrequieta, o morcego inteligente, avareza a inveja os sete pecados capitais o gato e o cão…todos muito bem nutridos no “bom reino da esculhambação”.

Este o Trilussa, que o amigo e tradutor Paulo Duarte nos descreve assim:

“E só como poeta, compreendeu e sentiu tudo quanto viam os grandes da cultura e do pensamento, aqueles jamais voltados para os interesses ou os negócios temporais mas debruçados sempre — de cérebro e espírito — sobre os problemas que afligem a humanidade e a maneira de limpá-los da ganga da idolatria do dinheiro, da borra da ganância, dos oportunismos e das opressões de todos os tempos.”

Diante de mais uma lista de políticos e cidadãos presos — corruptos e corruptores — penso não mais nos gatos, mas nos gatunos, travestidos em aves de rapina; mas poderia pensar nas hienas e no mar de tubarões, onde se pescam piabas do crime e pululam os oportunistas.

Trilussa convida-nos a nos juntarmos aos padeiros, às costureiras, aos taxistas, aos brasileiros de todas as profissões e afazeres a dar um basta nem que seja poético à loucura. As marchas poéticas talvez sejam uma forma de despertar o poder das panelas, despertar a ira sagrada contra os “espertalhões matriculados”.

E se olhar mais brando do humor permite ao mundo unir realidade e poesia, dá-nos a chance de instaurar uma nova camada de ilusão e riso.

Desejo que tal ilusão e o riso não nos causem a cegueira. E se abjeta espécie de gatunos age em bandos na política, os donos do zoológico somos nós — contribuintes — que calados não podemos ficar, diante dos miados sempre gulosos e hábeis ao arrancar um grande naco do frango coletivo em nome de um ideal.

As fábulas da política de Trilussa, no fundo nos lembram a fábula da vida: “ouço contá-la, dês-que vim ao mundo, e um dia, já estarei no sono, o mais profundo, e ela ainda não estará concluída…” Fábulas, afinal, são para ser vividas.

Ilustração: Josh Brown