Desabafo de um coração em estado de graça

Desabafo de um coração em estado de graça

Os velhos esquecidos nas casas de repouso por descuido dos seus. As crianças descobrindo a beleza. Os desprendidos tocando a vida e deixando a dos outros em paz. Aqueles que olham com afeto velhas fotografias. As pessoas que sorriem à toa tantas vezes, todo dia, lembrando a farra dos cachorros e o humor dos gatos.

As mães orgulhosas dos filhos. Os pais esforçados em sua porção de agrados. As almas solitárias sentindo alegria por entender, enfim, que o amor não é o contrário da solidão, mas é a sua solidão dividida com o outro.

Toda gente perdida na cerração da incerteza. Os que saem por aí feito cães farejadores, procurando amor e importância. As almas que cultivam afetos, famílias se acolhendo no abrigo caloroso das sopas.

Os novos com mãos simples abraçando os velhos da casa. As bisavós chamadas Bidita, Belinha, Zezé, Nenê, Abigail. Os amigos de infância celebrando sua saudade sem mais, a ansiedade infantil do reencontro, a alegria de cada um se avolumando no riso do outro.

A mulher que chora segurando o ventre, agachada no fundo de sua solidão. As aves de quintal ciscando a terra em que os meninos brincam de voos infinitos. As avós que costuram bonecas. As tias refazendo barras de calças, os padres falando com seus botões.

Os atentos que se deixam surpreender pela lua em noite alta, piscando lentos de sono franco sob a gentileza das estrelas. As donas de casa sonhando seu mundo, pessoas que acordam decididas a fazer aula de dança, doar roupas que não usa mais, fabricar sabão caseiro, cozinhar para um batalhão, caprichar na faxina, resgatar amizades perdidas. Quem oferece e aceita ajuda, ouvintes atentos, amantes empenhados, amigos dedicados, seres incapazes de agredir quem quer que seja, criaturas simples e corretas, dispostas a defender os seus e a dar jeito na vida. Aqueles que ainda sofrem de esperança.

Carteiros, guardas noturnos, estudantes, advogados, frentistas, pintores, cozinheiras, atores, engenheiros, manobristas, crianças, adultos, velhinhos e toda gente boa no mundo.

Deus e todos eles estão de prova. Todos serão nossas testemunhas. Antes do verão que vem, mesmo que a água acabe, ainda que o sol apague eu vou, ah… se vou, escreve aí que não tem jeito: eu vou me casar com você!

Então amaremos em paz nosso amor honesto, amor de cada um de nós a cada um dos nossos. Para que os nossos também se amem e amem os seus, em um eterno e irretocável ofício de dar e receber e distribuir amor por aí.

Ilustração: Corinne Hartley

André J. Gomes

É professor e publicitário.