O pioneiro “Viagem à Lua” (1902), de Georges Méliès, mesmo com toda a despretensão, amadorismo e frugalidade técnica de seus 18 minutos, intrigou a sociedade da época e enlouqueceu muita gente, também pelo ineditismo do que se tinha ali: uma outra realidade exposta numa tela grande por meio de um projetor. A Bula escolheu dez exemplos de filmes que podem até não ter como propósito primeiro deixar ninguém encafifado, mas que a mufa sai chamuscada, sai, desde “Fragmentado” (2016), de M. Night Shyamalan, que sempre se destacou exatamente por isso, filosófico-lírico “O Discípulo (2021), de Chaitanya Tamhane, todos na Netflix. A lista não obedece a critérios de classificação. Assista, reflita e vamos trocar uma ideia.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Quem gostou de “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” vai aprovar o filme de Kaufman, adaptação do romance de estreia do escritor canadense Iain Reid sobre uma mulher que depois de seis ou sete semanas quer terminar o relacionamento, mas mesmo assim aceita viajar para conhecer a fazenda dos pais do namorado, o que vai fazê-la repensar muitas coisas, o que suscita um fluxo de pensamentos monomaníacos que incluem, sim, romper com o parceiro, mas sugere também mudanças muito mais profundas.

Em “O Discípulo”, o diretor indiano Chaitanya Tamhane examina a vida de um artista em formação. O jovem Sharad Nerulkar quer se aperfeiçoar no raga, a música erudita da Índia, uma manifestação artística, mas também uma prática que visa a alcançar a elevação do espírito. Sharad busca ser o melhor em seu ofício, estudando as lições de uma grande cantora lírica indiana, que deixou apenas uma gravação de seu trabalho.

Em tempos de insegurança crítica que beira a paranoia, o longa de Andrew Niccol expõe um tema intrigante. No filme, um sistema de vigilância extrema liquidou qualquer hipótese de se burlar a lei. Até que um detetive encontra uma mulher responsável por uma grande descoberta: uma falha nesse super Big Brother que põe a perder a ordem social. Voltando ao começo desta resenha, o tema é intrigante porque fica a reflexão: até que ponto é válido se deixar persuadir pelo discurso da intervenção do Estado na intimidade do cidadão comum.

Dirigido por David Slade, este episódio da série que virou febre entre os nerds se desenrola num plano de distopia que, mais uma vez, mostra questionamentos sobre escolhas em tempos de inteligência artificial. Pródigo em citações a outros capítulos de “Black Mirror”, de Charlie Brooker, neste, protagonizado pelo programador de jogos Stefen Butler, a tecnologia volta a atormentar a vida íntima das pessoas, sob o pretexto de torná-la mais cômoda.

Em “Tempo Compartilhado”, dois homens unem forças para resgatar seus familiares de um lugar paradisíaco quando ficam convencidos de que um conglomerado americano quer expulsá-los dali. Uma crítica acerba à indústria de sonhos artificiais consumidos sob a forma de férias perfeitas por uma sociedade hedonista, ávida por prazer a qualquer custo. Neste terror nada convencional, a ação sucede à luz do surrealismo, ou feito uma comédia bizarra, que provoca risos involuntários.

No segundo longa de Charlie McDowell, estão em tela os dramas de uma sociedade perdida, cansada e obcecada por algum alento. A possibilidade concreta de prolongamento da vida após a morte, comprovada pelo cientista Thomas Harber (Robert Redford) leva muita gente a cometer suicídio. Ele não se acha o responsável nem parece sentir remorso pelos milhões de mortos e quer divulgar ainda mais sua grande descoberta. Entretanto, uma entrevista ao vivo o convence de que seu experimento carece de ajustes.

Grey (Logan Marshall-Green) e sua esposa sofrem um ataque aparentemente gratuito. Ele fica tetraplégico e a mulher morre. De luto, atônito, sem saber o que pensar e completamente imóvel a partir do pescoço, ele concorda em se tornar cobaia de uma terapia experimental que implica em instalar um microchip capaz de devolver-lhe os movimentos. Uma vez feita a cirurgia, com a mobilidade em sua plenitude outra vez e sedento por vingança, Grey vai atrás de quem arruinou sua vida.

Extraterrestres descem a diversos pontos da Terra sem dizer exatamente o que pretendem. É aí que entra a linguista Louise Banks (Amy Adams), desafiada a decifrar as mensagens muito sutis — e, se verá depois, ameaçadoras — dos alienígenas. Desta vez num suspense psicológico, mas não muito longe da ficção científica que o consagrou, o franco-canadense Denis Villeneuve imprime sua marca com uma produção muito bem cuidada, elogiada pela crítica, mas preterida pelo público por ser um belo filme, mas cabeça demais.

Neste longa do aclamado diretor M. Night Shyamalan, de “O Sexto Sentido” (1999) e “Corpo Fechado” (2000), encontra-se um James McAvoy intenso, maduro, pleno. McEvoy dá vida a Kevin Wendell Crumb, que se equilibra não entre duas, mas entre 23 personalidades. O filme tem elementos cênicos típicos do teatro, momentos em que há de se respirar fundo e aguardar alguns para ver qual dessas 23 personas vai entrar em cena. Em “Fragmentado”, Shyamalan, com muita originalidade e honestidade intelectual, aborda a loucura sob pontos de vista diferentes.