Acabara de completar 60 anos, sentia-se velho e culpava a mulher por não ter poupado o suficiente para que, uma vez aposentado, não tivesse mais que se preocupar com dinheiro. Ela, que morrera durante uma cirurgia, até o fim, manteve-se fiel a ele e ao estilo de vida que adotara. Mas, na sua concepção, ela o havia traído sob o aspecto financeiro e isso ele não conseguia perdoar, mesmo depois de sua morte.
Sempre gastou demais. Viagens, jantares, móveis. Uma estante de livros enorme. Dinheiro jogado fora. Ela não vivera o suficiente para aproveitar por muito tempo o apartamento decorado e a coleção de livros, CDs, DVDs, quadros que ele contemplava enquanto remoía sua insegurança financeira.
Agora, sozinho, absorto pelas lembranças de tudo que viveram juntos, ao menos podia desfrutar todos aqueles livros ao alcance da mão, algo valioso, mas que não compensava a falta de dinheiro para sustentar os antigos luxos aos quais ela o acostumou.
Lembranças que o conduziram à juventude. Procurou na estante “Sidarta”, o romance cheio de espiritualidade de Hermann Hesse, ambientado na Índia. Seus personagens conflituosos, divididos entre uma existência como indivíduo artístico e a presença em uma sociedade burguesa, o seduziram quando adolescente.
Mas o momento recomendava outra leitura. Então, decidiu-se por “Com a Maturidade Fica-se mais Jovem” que avistou ali, na prateleira dedicada a Hesse. Talvez a herança tivesse algum valor, ainda que não monetário, refletiu. Afinal, a mulher o ensinara a apreciar a leitura, a qual passou a dedicar várias horas do dia, esparramado na poltrona de Sérgio Bernardes, que ela adquiriu com tanto amor.
Fotografia: Wikimedia Commons
A futilidade que o jovem aprecia
Foi também por mim venerada,
Penteado, gravata, elmo e espada,
E muito mais a mulher esguia.
Só agora vejo com clareza,
Posto que, velho rapaz,
De nada disso sou mais capaz.
Só agora vejo com clareza,
De tais desejos a suma esperteza.
Lá se vão gravatas e permanentes,
Levando consigo toda a magia;
Mas o que além disso consegui,
Sabedoria, virtude e meias quentes,
Ah, logo depois também perdi,
E minha terra ficou fria.
Para os velhos é bom e são
Borgonha tinto ao pé da lareira,
E depois uma morte ligeira —
Porém só mais tarde, hoje não!
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