Em meados dos anos 1970, o multitalentoso Sebastião Rodrigues Maia, cuja estrela foi cravada na constelação dos ídolos brasileiros sob a alcunha de Tim Maia, descobriu por intermédio de um livro uma nova forma de enxergar o mundo. Aquele achado alterou completamente o modo de pensar de Tim: o gênio largou a bebida e as drogas, fez a banda inteira se adaptar aos tais ditames transcendentais, pintou instrumentos de branco e se desfez até mesmo dos brinquedos do filho Léo. A fase, conhecida como Racional, gerou dois discos — e mais um terceiro, lançado posteriormente —, em que Tim basicamente propagava a mística cultura racional e exigia, pela música, que as pessoas lessem o livro “Universo em Desencanto”, de Manuel Jacinto Coelho.
A situação toda é realmente interessante. Em uma análise mais detida, demonstra a força das palavras perante as mais inusitadas situações. Uma obra escrita com o intuito de supostamente aguçar a curiosidade das pessoas sobre uma denominada cultura, dita racional, foi capaz de perturbar o imaginário de uma estrela brasileira do soul e fazê-la alterar completamente o seu comportamento, chegando a tentar converter seu público sobre a necessidade de se conscientizar sobre a origem e o destino dos povos. O poder de persuasão do livro, que prescinde de avaliação, foi capaz da façanha de desbravar a mente do inenarrável Tim Maia, além de ser o objeto de três álbuns definitivamente importantíssimos para a música nacional. Não é pouca coisa.
Livros realmente transformam mentes. Não importa se são voltados a um público mais erudito ou para as massas. Basta perceber que, entre os livros mais vendidos nas listas brasileiras, normalmente a grande maioria é sobre autoajuda e autoconhecimento. Debruçar-se sobre um longo texto, seja para entretenimento, busca de respostas ou para estudo, altera bastante o modo como o receptor da mensagem enxerga o mundo. Alguns com mais, outros com menos empolgação, dependendo do nível de aceitação perante aquele novo universo que as palavras apresentam aos leitores. Os mais animados, portanto, tendem a cultuar o que leem como profundas descobertas que podem, de fato, alterar a vida dos outros — tal como imaginam fazer com as deles. E, por isso, abrem-se à necessidade da panfletagem. Nada de errado nisso.
É o que parece estar acontecendo com Felipe Neto, uma das personalidades mais influentes do Brasil e do mundo — segundo a lista da revista “Time”. Dono de um alcance fantástico graças às próprias palavras, com a ajuda de plataformas como Twitter e Youtube, nos últimos anos Felipe vem se engajando politicamente, principalmente após a chegada do bolsonarismo ao poder. Situando-se como voz ativa na ala chamada “progressista”, tendo inclusive sido alvo de uma teratológica denúncia por corrupção de menores e posteriormente enquadrado — por vias obscuras — na Lei de Segurança Nacional, Felipe Neto demonstra um amadurecimento que envolve não apenas um posicionamento mais firme, mas também a propagação de novas “verdades” por ele descobertas. Explico a seguir.
Em uma live do seu Instagram, Felipe Neto disse ler, em média, cem páginas de livros por dia. Consoante uma pesquisa realizada pelo Instituto Pró-Livro, o brasileiro lê uma média de 2,43 livros por ano. Isso significa que o influenciador, em um mês, supera quase uma década de leitura do bonus pater familias. Essa nova rotina o fez, por exemplo, sugerir como algo relevante para todas as escolas o livro “As Veias Abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano. Entenda-se: estamos falando de uma pessoa que, apenas no Youtube, possui 42 milhões de seguidores, a maioria deles jovens. E que agora está recomendando livros. Isso é fascinante. E também uma grande guinada no conteúdo, uma vez que a sua atenção, voltada para os jovens, costuma ter como foco gameplays de jogos que pouco acrescentam além da diversão, tais como “Among Us”.
Antes associado às práticas do irmão, como as desventuras na banheira de creme de avelã e a imitação de foca, hoje Felipe Neto tem uma relevância que o coloca invariavelmente no centro do debate político. Não à toa, o “Roda Viva” com sua participação teve 2,7 milhões de visualizações — ficou entre os dez mais vistos na história do programa. No ano passado, em um ato impulsivo, promoveu a distribuição de 10 mil livros com temática LGBT que de alguma forma haviam sido censurados em uma bienal carioca. Ato político, de demarcação de território, com viés inclusivo e, por ser por ele protagonizado, com muitos holofotes. Agora, ele lê; mais do que isso, divulga suas preferências literárias distribuindo gratuitamente publicações sugestivas, que despertam a curiosidade de uma parcela da população em fase de formação.
Tim Maia, em sua fase mística, emagreceu, exibiu uma voz limpa, apresentou uma criatividade absurda e produziu músicas atemporais, como “Imunização racional”. Contudo, o período sabático não durou muito. Em pouco menos de um ano, Tim queimou as roupas brancas, voltou à velha rotina desregrada e se desencantou com o universo de sua seita. Isso tudo, ao que contam, deveu-se ao fato de ele ter descoberto supostas pilantragens do guru a quem seguia. O resto é história.
Apesar das críticas, que citam sua demonstração de autoridade baseada em leituras incipientes, a fase “racional” de Felipe Neto deve ser valorizada. Independentemente de suas razões, ela traz luz em forma de letras para um sem-número de seguidores e desperta o desejo de leitura em outros tantos milhões. Mas seus detratores apenas enxergarão em suas atitudes algum tipo de “surfe na onda” ou oportunismo, em razão das contradições em seu discurso ao longo da vida. Algo injusto e pouco construtivo, que ignora qualquer evolução pessoal do influenciador. Vida longa ao universo encantado e atrativo das leituras. E que Felipe não caia em desencanto em algum momento, tal qual o gênio do soul.