Em carta inédita, o pintor Roberto Duprat revela encontros que teve com Salvador Dalí, em Paris, em outubro de 1940. Duprat era herdeiro de rico industrial paulista, que passara a investir na indústria após a revolução. Na capital francesa, pode confirmar uma história que diziam a respeito do renomado pintor espanhol: a mania de pagar contas com desenhos.
Duprat escolheu um apartamento em Montmartre, que ainda era o bairro dos artistas. A facilidade de tropeçar em Hemingway ou Picasso nos cafés locais tinha ficado no passado. Mesmo assim, foi lá que deu de cara com Dalí, em uma de suas estadas em Paris. Aos 36 anos de idade, o pintor surrealista já era uma celebridade, prestes a se exilar nos Estados Unidos. Duprat contava 23, e estava apenas iniciando a própria carreira de pintor. O encontro se deu no famoso Café de la Rotonde, aonde chegou sozinho e notou a presença ruidosa de Dalí, acompanhado de um casal. O brasileiro não resistiu em pedir-lhe um registro fotográfico, e, surpreso, recebeu um convite do próprio pintor para se juntar ao grupo. Foi o primeiro de cinco encontros.
No segundo, Dalí disse que gostou de Duprat, não por causa do seu trabalho — nem sequer aprofundaram o assunto —, mas porque achou que Duprat, vindo do Brasil, descendia de um mundo fantástico, muito próximo de suas aberrações oníricas. Outro motivo é que o brasileiro, naquela segunda noite, se ofereceu para pagar a conta: “Se me permitem, beber com amigos queridos e pagar a conta me inebria mais”. “Eu concordo com você”, assentiu o espanhol, enrolando os fiozinhos de bigode entre os dedos. O esquema se repetiu no terceiro e no quarto encontros. Em parte, a explicação é que havia quantidades absurdas de ego, concentradas no mísero espaço de um café, nesses tempos, em Paris. Então, a maneira mais óbvia de um latino-americano ser visto, entre os talentos europeus, parecia ser abrir a carteira. Sem contar que Dalí adorava pessoas folheadas a ouro.
A estratégia revelou-se acertada e acabou atraindo as atenções, a ponto de Duprat conseguir uma namorada cheia de bons contatos, Juliette. O caminho estava aberto para trazer os colegas, incluindo galeristas e marchands, para dentro de seu estúdio da Rue Nicolet. Tudo ia bem até Dalí azedar a relação. A noção de capital econômico do brasileiro revelou-se inútil no quinto e último encontro, após o pintor constranger Duprat, com essa história de pagar as contas. E também porque estava de olho em Juliette, desde a segunda noite. Talvez por causa dela o espanhol resolveu quitar a dívida de uma maneira além das possibilidades de Duprat, claramente agonística.
Quando este chamou o garçom à mesa, Dalí mandou que guardasse seu dinheiro e pediu ao atendente uma folha de papel ofício, em branco. “Veja como se paga uma conta sem ficar no prejuízo, americano”. Sob os olhares curiosos, e apesar do excesso de álcool no sangue, rabiscou com traços ágeis um elefante trombudo, assinou embaixo e deu ao garçom, que já o conhecia, para entregar ao patrão. “Se quiser, pode tentar fazer isso, criollo”, concluiu. Entre fascinado e decepcionado, com Dalí, Duprat voltou ao seu apartamento, enquanto os demais ficaram urrando diante do bilhete premiado que acabara de nascer das mãos do espanhol.
Era verdade que Salvador Dalí pagava contas com desenhos. Mas talvez o artista brasileiro tenha sido o primeiro a ser humilhado, por causa disso.
Traumatizado, Duprat fecha o ateliê, volta para o Brasil e desiste da carreira.