Artistas plásticos (“visuais”, de acordo com a nomenclatura corrente) produzem centenas, e até milhares de obras. Diante dessa quantidade, é inevitável que inúmeras tenham a mesma excelência, motivo pelo qual optamos pela seleção apenas de obras fundamentais. “Obra”, aqui, não significa necessariamente uma peça, mas a produção do artista. A ideia de “um” trabalho mais relevante que outros não faz muito sentido no domínio dos pintores, escultores, performáticos etc. O “Abaporu”, de Tarsila do Amaral, é um caso singular, constituindo-se verdadeiramente num ícone: é bastante provável que nenhuma outra realização da artista seja mais importante que esse quadro. Mas qual seria o quadro de Portinari acima de qualquer outro? E o de Volpi? Tais escolhas só podem ser emblemáticas. Um parâmetro razoável é determinar alguns grandes artistas, para depois escolher as obras. Como o número deles excede ao desta seleção – que, aliás, contempla apenas um artista vivo –, as exclusões são inevitáveis, embora os listados sejam indiscutíveis.
Nem sempre, infelizmente, há bons registros fotográficos de nossa arte, e nem mesmo os poucos grandes artistas que têm sites disponibilizam boas imagens. Com os museus a situação não é muito melhor. Outra dificuldade é que, quando eventualmente há boas imagens, os dados referentes não são fornecidos: as obras ficam soltas, no ar. Isso é muito comum em relação a Alfredo Volpi, Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Oswaldo Goeldi e Eduardo Sued. Uma grata exceção é o site da Fundação Iberê Camargo, de Porto Alegre, bastante completo. Disponibiliza boas fotos, informações das obras e textos críticos, além de ser bem documentado. A preocupação com o legado, segundo parece, também era uma obsessão do artista.
Na seleção aqui apresentada há um acadêmico, três modernistas, quatro neoconcretistas, dois expressionistas e um, digamos, construtivista. Talvez não soe exagerado sublinhar a importância de Lygia Clark e Hélio Oiticica, artistas não apenas que seguiram as vanguardas europeias, mas que foram a própria vanguarda, abrindo caminhos até então inexplorados, para a arte. Eles integram a rara categoria dos pioneiros, numa escala internacional. Para além de eventuais polêmicas, o importante é que o Brasil possui artistas realmente muito bons, reconhecidos aqui e no exterior, cuja produção nos enche de um orgulho genuíno. A arte é a educação dos sentidos, e precisamos dela para enriquecer nossa sensibilidade e percepção do mundo.
O academismo é forte na França, quando um de seus discípulos brasileiros, Pedro Américo, pinta esse quadro, em Florença. Mas o melhor da chamada “pintura histórica” parece ter desaparecido ainda na Era Napoleônica, com Jacques-Louis David, uma das grandes referências do pintor paraibano. Com atraso de décadas, esse tipo de pintura oficial teve um objetivo similar a cumprir, também no Império de Pedro II. Foi o Exército quem encomendou o imenso painel, a fim de exaltar nossa nacionalidade contra os vizinhos guaranis, retratados como bárbaros! O interessante é que Pedro Américo não viu a Guerra do Paraguai, valendo-se apenas das cartas trocadas com o Marechal Duque de Caxias para inspirar-se e compor, ao longo de sete anos, esta impressionante cena épica. Sua beleza é um triunfo da imaginação, independente de qualquer discordância estética e mesmo ideológica.
Técnica: óleo sobre tela
Ano: 1872 a 1877
Tamanho: 6m x 11m
Local: Museu Nacional de Belas Artes, Rio de janeiro, Brasil
Esse pequeno quadro é de importância capital para a cultura brasileira, visto que tem consequências para além das artes plásticas e do modernismo. Além de ser uma daquelas obras que superam o academismo, incorporando concepções revolucionárias para a época, no Brasil, sua visão inspirou nada menos que o “Manifesto Antropófago”, de Oswald de Andrade. Abaporu é sinônimo de “canibal”; portanto, em termos simbólicos, representa aquele que deglute o inimigo para assimilá-lo. Nasce, dessa intuição, uma das principais teorias estéticas do Brasil, além de ter influenciado o Tropicalismo, segundo Caetano Veloso. Pintura da segunda fase (“antropofágica”) de Tarsila, a obra tem características oníricas que a ligam a uma espécie de surrealismo latino-americano. Além disso o “Abaporu” consolidou-se, como o Cristo Redentor, na raríssima condição de ícone do Brasil.
Técnica: óleo sobre tela
Ano: 1928
Tamanho: 72 x 85cm
Local: Museu de Arte Latino-americana de Buenos Aires, Argentina
Enquanto pintor, Cândido Portinari jamais foi superado, no Brasil. Esse quadro de sua autoria está para as artes plásticas brasileiras como “Vidas Secas” (1938), de Graciliano Ramos, está para nossa literatura. É o mesmo assunto, tratado com a mesma genialidade e força dramática, reduzido a um instantâneo. É também o mesmo contexto, de engajamento da arte, sem sacrifício de notáveis qualidades pictóricas, já de um virtuose, capaz de transformar carne em pedra: pois é o que parecem ser essas figuras calcificadas, caminhando sem rumo. A obra participa do mesmo espírito de denúncia social presente na “Guernica” (1937), de Pablo Picasso, e do muralismo mexicano, em geral. “Os Retirantes”, com sua imensa carga histórica, tensiona perfeitamente com uma visão strictu sensu da arte, segundo a qual a forma, sem qualquer outra finalidade, é o único objetivo da estética. Pode-se especular que não, porque demonstra que o rigor técnico, em mãos hábeis, não fica necessariamente aquém do tema.
Técnica: óleo sobre tela
Data: 1944
Tamanho: 181x192cm
Local: Museu de Arte de São Paulo, MASP, Brasil
“Ogiva” é parte de uma série — como também “Bandeirinhas” e “Fachadas” — que reflete a fase madura do paulista Alfredo Volpi: a da depuração formal. A partir de um limitado repertório iconográfico, o artista alcançou nesse processo um êxito singular. Sua pintura, em têmpera, está numa zona limítrofe entre a figuração e a abstração, como também muitos trabalhos de Portinari. Só que Volpi, claramente, radicaliza na cultura plástica formalista, para além do Cubismo analítico. Opera na vertente geometrizante de Malevicth, Albers e similares, do modernismo. Nessa situação, a figura humana não é mais necessária. O curioso é que Volpi não era um homem muito estudado, segundo esclarece Lorenzo Mammí. Por isso, “Não foi um pintor de sistema, e sim de método”. Um método já definido como lírico e artesanal, pelo qual contrasta intuitivamente com o puro racionalismo concretista. Por causa de seus motivos, a arte de Alfredo Volpi tem uma dimensão sociológica inolvidável, traduzindo o ethos brasileiro como poucas.
Técnica: têmpera sobre tela
Data: 1970
Tamanho: 22,9 x 30,5cm
Local: Galeria Simões de Assis, Curitiba, Paraná, Brasil
Com frequência o gênio é julgado pelas imitações, que o vulgarizam a ponto de parecer lugar comum. Talvez seja o caso de Franz Weissmann, criador da série das “Fitas”, sua realização mais memorável. A premissa dessa série é o chamado “vazio ativo”, conceito chave de um trabalho obsessivo, ou pelo menos o que resultou em centenas de obras como “Three Articulate Blades”, sejam maquetes ou esculturas realizadas para diversos espaços públicos, no Brasil. Além dessa aspiração utópica de diálogo com as ruas, o artista inova ao aderir a uma característica peculiar da produção contemporânea: o desinteresse pelo volume em proveito do espaço. A série “Fitas” deriva de uma geometria rigorosa, baseada quase sempre nas linhas retas e no uso de cores vivas, concessão que acentua seu lugar na paisagem / espaço, amenizando com certo lirismo a dureza do metal. No dizer do próprio artista, caberia à cor “valorizar os planos”, de envolvente rigor formal.
Three Articulate Blades, de Franz Weissmann
Técnica: Aço sac 50
Data: sem data
Dimensões: 65x44x72 cm
Local: Museu de Arte de São Paulo, MASP, Brasil
Embora guarde semelhanças morfológicas com a obra de Weissmann, do mesmo grupo neoconcreto, uma das diferenças de Amílcar de Castro é a oxidação: jamais utiliza a cor nas suas esculturas. Outra, é certo destaque para as formas circulares. Mas, conceitualmente, é do ferro dobrado que atinge um ápice criativo, visto que aqui o mineiro encontra seu recurso expressivo mais original. “Começa aí a escultura de Amílcar de Castro”, diz Ferreira Gullar, teórico do movimento, nos anos 50. “Um corte e um gesto. A placa, invencivelmente calada e imóvel, enfim se anima e fala.” A pergunta era: que arte fazer depois da ruptura com a natureza? “Essa ruptura implicava o abandono da figura e consequentemente de toda a linguagem pictórica e escultórica do passado. No plano da escultura, Amílcar é quem vai mais fundo nessa indagação. É o mesmo problema da espacialidade que se impõe a Weissmann, com solução distinta. Senhor de recursos mínimos — ainda mais que o colega carioca — é ao torcer o plano e reencontrar as três dimensões que ele reiventa a escultura.
Técnica: corte e dobra em aço
Data: anos 1990
Dimensões: 80 cm e 2,5 polegadas
Local: Instituto Amílcar de Castro, Belo Horizonte, Brasil
Lygia Clark, a “Propositora”, lança a arte brasileira num território novo e radical, próprio da segunda metade do século 20. Transita-nos da pintura e da escultura, como gêneros consagrados, para o estranho mundo da body art, da performance e do happening, até então desconhecidos em nosso meio. Suas invenções nesse campo revolucionam a ponto de colocar em xeque a ideia de autoria. Ao permitir a intervenção direta do público sobre o objeto, cria a base de uma nova concepção de arte e, especificamente, da escultura. O resultado disso é a descoberta de uma nova possibilidade: são os “Bichos”, de 1960, cuja forma se altera em contato lúdico com o antigo expectador, agora ativo. Em geral, o critério reitor da arte de Lygia não é mais a beleza retiniana, como requer a pintura bidimensional, mas a experiência tátil e sensorial. De tal sorte que, na última etapa de sua produção, a arte já se confunde totalmente com a terapia, como se dá com a “Baba Antropofágica”, exemplo onde o corpo performático é elemento essencial da obra.
Técnica: aço com dobradiça
Data: década de 1960
Dimensões: 50.0 x 45.0 cm
Local: Alison Jacques Gallery, Londres, Inglaterra
Enquanto Lygia Clark parece se conter nos limites da experiência solitária do indivíduo, com seus complexos, Hélio Oiticica torna o público partícipe da operação estética de modo a refletir sua experiência de sujeito, não apenas “no” mundo, mas “em face” do mundo. É quase um apelo à atitude. Os “Parangolés” são uma invenção do artista, e correspondem à última das seis etapas de sua carreira revolucionária, que parte dos “Metaesquemas”, ainda obras de parede. Dessas seis etapas, as duas últimas, já nos anos 1960, possuem um forte conteúdo sociológico e político. Os parangolés nascem da vivência de Hélio com a comunidade da Mangueira, no Rio. Feitos para vestir, à maneira de capas e aventais, têm uma inerente finalidade performática, que os filmes de Ivan Cardoso recuperam. Outras obras de sua autoria, como o “Grande Núcleo” (1960-66), que representa um turning point para o plano tridimensional, ou, ainda, o “Bólide caixa 18, Homenagem a Cara de Cavalo” (1965-66), poderiam igualmente estar aqui, contribuindo para essa lista. Mas o parangolés são ainda mais emblemáticos. No contexto da arte contemporânea, Hélio Oiticica é tão radical quanto Lygia Clark, com a diferença marcante de que sua arte sinaliza para a totalidade histórica.
Ano: 1967
Foto: Claudio Oiticica
A gravura é tida como gênero menor, nas artes plásticas. Seria como comparar o quarteto à sinfonia, na música. É claro, nem todos concordam com isso. Fato é que as gravuras de Oswaldo Goeldi causam tal impressão que é difícil esquecê-las, efeito que deriva de sua atmosfera característica, acentuada pela técnica da xilogravura. É algo que nos atinge no âmbito da psiquê, como os romances de Dostoiévski; aliás, com as traduções da editora José Olympio por ele ilustradas, em 1941. São obras expressionistas, de grande impacto gráfico. Para Ronaldo Brito, essa obra representa “o exemplar típico do sujeito anônimo universal (…), sozinho dentro do mundo, diante da vida, a enfrentar como pode os elementos. À sua maneira concisa, nada grandiloquente, a pequena gravura nos reensina a ver o mundo, a senti-lo como uma cena móvel e traiçoeira, cercada de intenções e presságios inquietantes”.
Técnica: xilogravura
Data: 1957
Tamanho: 22.00 x 29.50 cm
Local: Acervo Frederico Mendes de Moraes
Já em meados do século 20, Lygia Clark questionava a pintura em duas dimensões. Surgem daí os “Espaços Modulados”, de 1957. Porém, o gênero resistiu e resiste, até hoje; talvez porque, enquanto imagem, seja o suficiente para projetar a vastidão de mundos interiores. E, nesse sentido, o do gaúcho Iberê Camargo é dos mais impactantes, servindo aqui de contraponto. Com incursão pelo tachismo (a exemplo do painel para a OMS, em Genebra), Iberê é um grande expressionista, o que significa dizer que sua obra deriva de um impulso totalmente contrário ao da pintura neoconcreta. É guiado não pela razão, mas pela catarse, situação para a qual o gesto é muito mais importante do que o cálculo, com profundas ressonâncias inconscientes. Isso tem consequências perceptíveis na “violência” dos traços e no empaste da tinta. Ronaldo Brito diz que Iberê é “adepto da lírica da angústia pessoal e da independência solitária, tipicamente moderna (…). Nem símbolos, muito menos caricaturas, nem mesmo personagens, os ‘Ciclistas’ de Iberê Camargo talvez sejam finalmente criaturas, na acepção básica e elementar do termo. É legítimo até especular se não estaríamos frente a uma das últimas grandes formulações plásticas da noção de Figura”, visto que, por fim, o artista resgata a representação humana.
Técnica: óleo sobre tela
Ano: 1989
Medida: 180cm x 213cm
Local: Acervo Fundação Iberê, Porto Alegre, Brasil
Compare esta tela com a de Iberê Camargo. São poéticas muito diferentes. Talvez seja um equívoco supor que todo arte traduza a angústia do artista ou represente apenas a angústia existencial. Não é assim, por exemplo, nos casos de Matisse, David Hockney e do carioca Eduardo Sued: são pintores que associamos facilmente à estados de ânimo positivos. O dado que destacamos nesse exemplo é o manejo da tinta, a textura irregular de certas áreas do plano, constituído de linhas, quadrados e retângulos. Além da cor-pigmento, a luz exerce um papel sutil, mas significativo, ao tensionar a premissa geometrizante com um dado estranho ao princípio racional. Com isso, aquelas formas frias vibram em consonância com um elemento inusitado, no contexto da tradição construtivista (na linha de Luiz Sacilotto, por exemplo). É outra a disposição do espírito, a revelar o temperamento humano por trás da obra e, mais que isso, o vestígio de sua passagem.
Técnica: acrílica sobre tela
Ano: 2012
Medida: 110cm x 140cm
Local: indeterminado