Eu não quero ser sedado

Eu não quero ser sedado

Quem. Nunca. Quem nunca. Quem nunca se sentiu perdido, acuado. Cem dúvidas, ainda não me encontrei. Por tudo que li. Por tudo que vi. Por tudo que vivi e que não vivi. Onde residirá o mais lamurioso melodrama: no jovem que pensa não ter um futuro ou no velho que pensa não ter um passado. Quem. Nunca. Quem nunca. Quem nunca sentiu, agora, sente. Acha que sente. Administra mal os próprios sentimentos. Nada é pior do que a encruzilhada quando se está mal acompanhado. Eu ando com o sol. Eu ando com a chuva. Eu ando desprevenido com as mãos enterradas nos bolsos. O passado é um cadáver ambulante a quem se dá a mão para atravessar a rua da amargura. Somos patéticos até para recordar. Não tem sido um mergulho interior proficiente. Ouço sinos que dobram por surdos que ladram. Coloco o rabo entre as pernas e parto na próxima caravana. Ninguém da geração high tech faz ideia do que isso significa. Caravanas. Vacilos literais. Sentidos figurados. É fato que a juventude descolada anda escolada na falta de perspectivas e na descrição melancólica de sonhos desfigurados em tão tenra idade. Eu culparia alguém. Eu culparia as velhas gerações. Mas, se for para botar a culpa em alguém, que seja em mim mesmo. Que seja em sóis. Que seja em chuvas. Para livrar a cara de Deus e deificar canalhas que se vestem com ternos cafonas que recendem naftalina. Que as traças roam as roupas velhas e o ranço. Além da morte certa, o destino é um eterno questionar que acabrunha e que faz cair os cabelos. Fiquei calvo cedo demais. Mais ou menos na mesma época em que desencantei com a humanidade. Eu canto para vazar a fervura. Eu fervo para evaporar em forma de alma. Eu escrevo porque não posso sair por aí socando pessoas, beijando pessoas, passando por doido ou por tarado da internet. Eu nunca curti Ramones. Eu adorava as chacretes. Eu tinha inveja do Chacrinha, o velho palhaço que emplacava o ibope sem disparar um só tiro, sem praticar exorcismo ao vivo em atores, sem falar mal da vida de ninguém. Ah… Como eu amava as chacretes. As suas caras de puta. Eu, o grandessíssimo filho-da-puta que dava audiência para uma poderosa emissora de TV, enquanto os militares colocavam o país nos trilhos e os estudantes nos paus-de-arara. Nunca mais tivemos notícias de Marco Antônio, desaparecido aos 14. É preciso aproveitar o ensejo para ir passando a boiada sobre o sofrimento e o medo. Eu sei que estou misturando os assuntos. Pareço um ser transtornado. Desnecessário que alguém confesse que não está entendendo patavina deste texto, porque eu mesmo não estou. Devo estar sofrendo uma espécie de colapso nervoso. Uma possessão infrutífera por espíritos perdulários que nada têm de relevante para revelar, senão respostas irresponsáveis e aquela fumaça fantasmagórica que ninguém enxerga, se não for um sensitivo. Eu não quero ser sedado. Eu quero sentir tudo. Quisera menos sentir, contudo. Somos tão frágeis. Mudamos de ideia com tanta velocidade. Tudo começou com o silêncio; depois, adveio a noite. Então, a lua no seu teto escuro e, com ela, dúvidas insolúveis. Infinitas como as estrelas. Impraticáveis de se contar. Esturricadas de sol. Sufocadas pela chuva. Embarcadas em caravanas aleatórias com destino a lugar algum.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.