Elogio do imobilismo

Elogio do imobilismo

Somos o mais filosófico dentre as centenas de povos do planeta. Poucos apreciam perder o tempo que desperdiçamos em meio a contradições intermináveis. Adoramos confundir lerdeza intelectual com sabedoria, e o infinito com o indefinido. Em consequência, adiamos a realização do possível, sem prazo de validade. Somos — quem sabe? — mais pacientes que japoneses, chineses, tibetanos, vietnamitas, tailandeses e demais povos orientais, juntos. Somos mais filosóficos que alemães, franceses, ingleses, austríacos e dinamarqueses. Precisamos de tempo e de sossego para pensar e adiar as decisões necessárias. Não gostamos de nos mexer, a não ser o inevitável, se possível apenas o mindinho. Os entendidos sabem que a linguagem revela muito da alma de um povo. Nós, por exemplo, temos o hábito da siesta tão arraigado que inventamos dez palavras para ele: cochilo, descanso, repouso, soninho, soneca, pestana, modorra, madorna, quietação e sonata.

Um povo que ama com sincera honestidade a posição horizontal, eis aí o povo brasileiro, sem disfarces. Não somos a quinta população mais numerosa do mundo por acaso: o rala-rala, o xenhenhém, o agarrado e o chaveco dependem de camas e chãos para se materializarem em futuros bebês. Por esse motivo, obviamente, não poderíamos deixar de incluir no hino nacional, lá pelas tantas, o verso “Deitado eternamente em berço esplêndido, / ao som do mar e à luz do céu profundo, / fulguras, ó Brasil, florão da América / iluminado ao sol do novo mundo.” Sem contar esse ‘fulguras’ (brilho intenso) que ninguém normal usa sob o risco de passar por ridículo (ocorre o mesmo com o tal ‘presidenta’), o resto, como poesia, é puro lixo parnasiano reciclado.

Mas o resumo é autêntico e sincero: nosso povo quer ficar deitado, se possível num berço esplêndido e, se Deus existir e ainda por cima for justo, eternamente. Como ambição pouca é bobagem, o descansado povo brasileiro ainda pretende ser uma joia iluminada pelo sol das Américas e do planeta inteiro (isso não está na letra, mas se formos fiéis ao estilo gongórico, dá para supor). Devemos ser magnânimos e encarar com simpatia a megalomania calibrada, na medida exata, do entusiasmado letrista. Dá pra ver a cena, ele na escrivaninha, pensando, escrevendo e rasgando uma folha de papel atrás da outra, até que a luz baixou sobre ele, a iluminação celeste, a inspiração barroca, o sopro da musa: imaginou o brasileiro forte, com todos os dentes, empregado ou tocando seu pequeno negócio, morando em casa própria, numa cidade tranquila, iluminada e saneada, com transportes e escolas dignas, vendendo saúde, diante do mar ou nos tabuleiros do sertão, com o braço direito erguido e o punho fechado à espera do sol que iluminará seu rincão.

Urge espalhar, do monte Caburaí ao arroio Chuí, a mensagem pacífica e tranquilizante do Elogio do Imobilismo. Trata-se de uma atitude política clássica, imune às modas alimentadas pelos governos, partidos, revistas semanais, redes sociais, blogs sujos e professores desocupados das universidades públicas. Vamos pedir ajuda à selva amazônica e suas sucuris, ao colorido pantanal e suas piranhas, ao cinzento sertão e seus severinos de maria, ao povo do cerrado e suas veredas secas, aos louros que se acham europeus da serra gaúcha.

A bandeira dessa campanha terá o rosto de Macunaíma, com fundo mesclado de azul calcinha do litoral e preto & branco sebastião-salgado do interior. Sim, buscaremos o reforço de Macunaíma, o único herói nacional autêntico, símbolo maior de nossas qualidades, o espírito-que-não-anda-não-caça-não-faz-nada-só-come-e-dorme. Ele precisa voltar e reinar de novo, recuperar sua coroa de palha de coqueiro e se irmanar com quase 205 milhões de patriotas, prostrados, de quatro, em estado de inação. O lance da hora nos últimos milênios, por aqui, sempre foi ficar parado. Admirar o mundo sem comentar, sem pitacar, sem dar um pio. Fazer o pouco que se precisa pra não morrer de fome. No resto do tempo, olhar, desconfiar, namorar, dormir. E esperar por algo que não tem a menor chance de acontecer. Somos uns gênios: conseguimos fazer nada e não fazer nada ao mesmo tempo.

Com esforço e dedicação sincera, atingiremos brevemente nossos sonhos e nos igualaremos a coisas verdadeiramente edificantes, como um muro, por exemplo, ou uma montanha, se formos ambiciosos. O pico da Neblina. A serra da Capivara. Um baobá que não está nem aí para mais uma mudança de século. Arrecifes de coral. A floresta amazônica. O velho arraial de Canudos, que estava submerso e agora ressuscitou com a seca do São Francisco. Coisas sólidas, que desafiam o tempo e a história. Macunaíma voltará desta vez num parto indolor, ele foi consultado e prefere, tem anestesia de sobra no país. Disposto mais do que nunca a preguiçar e a nos transformar, em definitivo, num povo de bundões que abdicou de resolver seus problemas históricos, hoje simples pesadelos recorrentes misturados a sonhos histéricos.

Com as exceções de sempre, todos os grandes filósofos, dos pré-aristotélicos aos pós-marxistas, fizeram o elogio da ação para “transformar” a realidade. Agora, no século 21, como nada mudou, uma conclusão se impõe: tudo precisa parar. Antes, a reclamação era que as informações eram poucas e não circulavam. Agora, as redes sociais e a internet congestionam o espaço virtual com informações quase sempre inúteis destinadas a fazer a festa de milhões de pessoas quase sempre desocupadas. Ou seja, mesmo na base do tranco e do tropeço, estamos no rumo certo. Os homens e mulheres corajosos do Brasil — ok, tem exceções por aí —, se escondem agora atrás de computadores e celulares, no conforto de bunkers antes chamados de lares. É uma opção silenciosa, resignada, de regresso à oca de centenas de anos atrás, e principalmente, à caverna de onde saímos na pré-história.

Nesses tempos sombrios de vida cara, pessoas esquisitas e ruas perigosas, o próximo passo a ser dado, dentro de nossos subterrâneos virtuais, sob a liderança de Macunaíma, é divulgar com urgência e gritar aos quatro cantos do país e do mundo, conforme a tradição megalô do país, o elogio da inércia construtiva, do imobilismo edificante e da mais pura contemplação, que elevam o espírito e consolam os moradores da terra das palmeiras e dos sabiás.

Não é preciso fazer mais nada. Imobilizados, parados, quietinhos num canto, em silêncio, no máximo gemendo “ai, que preguiça!”, estaremos contribuindo notavelmente para não destruir mais nada. Paradão aí, Brasil! Ordem é imobilidade. Inércia é progresso.

Fred Navarro

Escritor e jornalista.