Um trabalho acadêmico sobre Gabriel García Márquez serviu para resgatar memórias pessoais e ao mesmo tempo mergulhar na representação dos mitos do heroísmo sul-americano. García Márquez, mestre em desvendar o imaginário de uma cultura pontuada pelo exagero, nos dá no seu livro “O General em Seu Labirinto” um quadro terrível de Símon Bolívar, o ex-líder que faz uma descida aos infernos ao longo de um rio. Exatamente o contrário da ascensão que sua lenda experimenta hoje, cercada de equívocos por meio de eventos políticos.
Por isso, é bom resgatar a literatura no que ela tem de mais contundente, a capacidade de nos abrir os olhos e o coração para as muitas faces da opressão.
Onde andará meu Quixote? A edição espanhola de bolso, em papel bíblia, cheia de ilustrações, que alguém me deu de presente nos anos 1960, deve andar perdido em algum canto da biblioteca improvisada ao longo do tempo na minha casa. Especialmente as ilustrações desse primoroso exemplar são a pista fundamental para analisar o livro de García Márquez. Um quadro representando de Bolívar deitado fez emergir na minha memória os desenhos e pinturas dessa edição comemorativa do romance de Miguel de Cervantes. Nessas imagens, o cavaleiro da triste figura jaz, no fim da vida, enlouquecido e alquebrado pelas lutas contra gigantes imaginários.
O Bolívar de García Márquez é um Quixote que traz dentro de si, enterrada, sua Dulcineia — a esposa Maria Teresa Rodríguez del Toro — que nenhuma mulher, nem mesmo a lendária companheira Manuela Sáenz, poderá substituir. Tem a seu lado, permanentemente, um Sancho Pança — o escudeiro José Palacios — ao mesmo tempo prático e idealista, que tudo provê para seu ídolo sem visar recompensas. Perambula, como um cavaleiro andante ardendo em febre, pela América em ruínas. Nos lugares onde pousa — como se fossem estalagens de uma Espanha medieval — é recebido como herói, mas tratado como um moribundo, contaminado pela tísica.
O guerreiro decadente, apesar da lucidez, ainda sonha com a segunda chance. Quer enfrentar seus moinhos de vento — os inimigos que usurparam o poder, gigantes impassíveis de mil braços que, junto com a doença, o reduzem à imobilidade. A humanização de Bolívar, assim, obedece à matriz literária cervantina, como se Quixote encontrasse na América o palco ideal para sua loucura.
Eu também perseguia minha segunda chance. Meu exemplar do Quixote já tinha sumido uma vez, quando foi emprestado para um colega jornalista. Não houve devolução porque viajei subitamente da cidade onde trabalhava, deixando a relíquia para trás. Só matei a charada quando lancei meu primeiro livro e a apropriação involuntária foi confessada publicamente, numa resenha assinada pelo dono improvisado do presente perdido. Houve prova da boa fé quando recebi, intacta, a encomenda pelo correio.
Aproveitei aquele reencontro para continuar a leitura do livro. Mas não aprendi a lição. Acabei não reservando um lugar especial para o Quixote e por isso, agora, reviro estantes e consulto espaços esquecidos embaixo de pilhas de papéis velhos — poemas inéditos, artigos publicados, memórias de uma vida dedicada ao texto. Procuro em vão.
O consolo é ter encontrado o fio desse labirinto e poder, na sequência, carregar outro caso literário antigo para entender melhor a agonia do herói descrito por García Márquez. Enxerguei naquele Quixote latino-americano o travo amargo de um guerreiro situado mais ao sul, é verdade, mas igualmente crítico e prostrado diante do destino. Falo de Martin Fierro, o herói do escritor argentino José Hernandez, sucesso popular desde 1872. Na análise que faz sobre esse clássico da literatura latino-americana, Jorge Luis Borges confirma essa minha suspeita (li sua análise depois de ter levantado a hipótese do Bolívar quixotesco), traçando alguns paralelos.
Primeiro, identifica duas obras que extrapolam seus objetivos — Cervantes vai além de uma crítica às novelas de cavalaria e Hernandez, ao denunciar injustiças locais e datadas, consegue enfocar “o mal, o destino e a desventura, que são eternos”. Borges também aponta para a falta de identificação dos dois heróis com o Estado, uma herança espanhola que passa da península ibérica para o pampa. Ao mesmo tempo, destaca o caráter nacional que cada um dos livros adquire — assumindo e definindo o perfil do país onde foi gerado — e a presença do sobrenatural, elemento mágico obrigatório em toda obra eterna. E também encontra um Sancho em Martin Fierro, que é o personagem Vizcacha, um “tipo proverbial por excelência”.
Na página 228 do livro de García Márquez, Bolívar diz textualmente, comentando a diversidade alimentar na cidade do México: “Se comen todo lo que camina”. Trata-se de uma citação literal, não assumida, de “Todo bicho que camina va a parar al asador” (página 125 do livro de Hernandez), verso muito citado por meu pai na minha infância. É possível que a solidão de Bolívar tenha também em Martin Fierro sua matriz. O herói desterrado no tempo, alimentado pela memória, que anda (Quixote), canta (Martin Fierro) ou dita cartas (Bolívar) está dividido: tem a consciência da morte, mas sonha em reencontrar a glória.
Essa tragédia compõe o labirinto expresso na linguagem. García Márquez coloca o personagem diante do próprio mito, consciente de que o corpo frágil, deitado na rede, não encarna mais o herói que as pessoas insistem em invocar. Ele não é mais o libertador, apesar de manter, em alguns momentos, sua autoridade nata. A guerra, agora longe no tempo, perdeu o sentido. Independência, para quê? Talvez tivesse sido travada por uma questão de virilidade, de sedução pessoal ou simplesmente de paixão. São esses, no fundo, os valores apontados por García Márquez que regem a construção precária das nações latino-americanas divididas.
A penosa viagem ao longo do rio Madalena foi propositadamente escolhida por ser a menos documentada e, portanto, a mais aberta a uma abordagem diversa da mitologia oficial. O texto vai despindo o teatro da guerra, misturando batalhas com boatos, levantando fatos por meio de várias versões, entronando a farsa, compondo cenários de uma história que chega ao osso do herói prostrado e em delírio. O exagero da narrativa engessado num texto magistralmente enxuto — marca registrada do gênio de García Márquez — força a ideia do “real”, tornando-o expressivo pelo excesso, levando-o à lenda.
Como contraponto, o fio da história é retomado por meio de elementos prosaicos, nos quais cachorros, músicas e amores ligam-se à ideia de lutas, golpes, repúblicas.
Este recorte, feito de leituras e memórias, está atento ao alerta de Hayden White sobre os perigos do texto, onde o historiador/escritor cria as premissas para forçar as conclusões e confundi-las com a verdade. Sorte que, ao perder meu Quixote, encontrei Borges numa vitrina de livraria. Mas não desisto e continuo procurando — onde andará aquela relíquia, perdida na poeira de outros livros, na sala, no escritório, no armário?
Enquanto insisto, escuto passos. Meu pai caminha no quarto. Lembro do seu chapéu de feltro desabado, pistola calibre 32 no bolso do paletó comprado em Buenos Aires, passeando pelas ruas da nossa cidade. Ou mesmo contando histórias ao redor de uma fogueira assombrada pelo céu do pampa. Ex-combatente de 1930 e 1932, gostou quando virou personagem de alguns poemas do meu segundo livro.
No nosso último encontro, me acompanhou até a estação rodoviária. Longamente, como nunca tinha feito, me abraçou. Mais tarde, avisou para os filhos, inumeráveis: “Não se alarmem. Quando eu morrer, não vou fazer barulho”. Cumpriu sua promessa, num inverno longínquo. Tinha feito barulho demais. Era um desses guerreiros, que não dão o braço a torcer no momento da última solidão, quando se veem rodeados apenas por palavras.
Sua herança foi aquele abraço, tão presente quanto um livro perdido e insubstituível.