O título extenso nos entrega o óbvio: vai falar de mães e de filhas. Mas não aparenta a ousadia do projeto: é um romance que abraça dezenas de gerações e uma vastidão de anos. Maria José Silveira dá vida a uma série de mulheres, desde a chegada das primeiras naus e caravelas portuguesas em solo brasileiro até a contemporaneidade. História do Brasil sob luzes femininas, não é demais?
Logo após o sumário, há uma linha genealógica que parte de Inaiá e termina em Amanda, correspondentes à primeira e à última das personagens retratadas. A coluna vertical indicada pelas setas é pontilhada por nomes fortes — Maria Cafuza, Guilhermina, Ana de Pádua, Jacira Antônia, Açucena Brasília, Diva Felícia, dentre outros — cujas origens remontam à mesma ancestral, a índia Inaiá. O livro começa com o seu nascimento, em 22 de abril de 1500, que coincide com a invasão branca às praias de Porto Seguro, na Bahia.
Numa prosa cativante, o leitor acompanha nascimentos e mortes, e a vida que se renova a cada geração, numa maravilhosa coreografia dos tempos. Cada capítulo é dedicado a revelar uma mulher da linhagem. Contém seus amores, sonhos, tragédias pessoais, dias de martírios e venturas, violências que perpetram ou que lhe são impingidas. Em alguns deles, é até possível contemplar seus abismos interiores. Curioso como Maria José te empurra pra dentro de histórias densas, mesmo que limitadas a, no máximo, dois ou três capítulos, quando a mocinha de páginas atrás torna-se uma longeva avó/bisavó.
A família de mãe e filhas exibe a beleza da diversidade de raças que constituem a identidade do povo brasileiro. Ao mesmo tempo, é preciso lidar com cenas fortes e o processo violento de constituição dessa nação. A cadência das narrativas orquestra o desenrolar dos acontecimentos históricos. Através dos enredos, vislumbramos a fúria da Coroa portuguesa em extrair o máximo de riqueza da Colônia, a cooptação e dizimação dos povos originários, o tráfico negreiro e a vida nos engenhos. Viajamos na companhia delas e, também, ao lado de bandeirantes, garimpeiros e capitães do mato interiorizando os povoamentos. A paisagem, pouco a pouco, vai mudando, do Brasil Império para a República. Depois, as histórias perpassam pelo tenentismo, o regime liberal populista, os anos de repressão, as mazelas da vida moderna, até culminar no impeachment de Dilma Rousseff.
Repara, o ancestral ressoa entre as páginas deste livro por meio de sentimentos fugazes, lembranças e sensações. Em alguns momentos, ele até se materializa em objetos que embarcam no fio narrativo e “viajam no tempo”, evocando emoções intensas e inexplicáveis nas personagens. Genial.
Admito que, não raro, conforme a leitura avança, as personagens iniciais tornam-se um pouco difusas. Compõem um emaranhado de aragens do passado e de lembranças frouxas, mimetizando a relação com a nossa própria ascendência, ela mesma envolta numa aura de mistérios e incertezas.