Uma família chamada Corleone

Uma família chamada Corleone

Filmes que fazem grande sucesso por ocasião do lançamento têm seu conteúdo apreendido imediatamente pelo público? Nem sempre. Alguns precisam de tempo para ser adequadamente compreendidos, seja por veicularem uma nova visão de mundo, seja por inovarem na maneira de contar a história — variáveis que, juntas, compõem as obras-primas. Este pode muito bem ser o caso de “O Poderoso Chefão” (1972), cuja importância não para de crescer, mesmo decorridos já 50 anos desde a sua estreia.

Não se trata, vale esclarecer, de um filme complexo, do tipo que exige do espectador altas lucubrações. O roteiro, relativamente simples, com começo, meio e fim, articula uma sucessão de episódios às vezes previsíveis, outras vezes previamente anunciados, que vão de 1945 a 1955. É o retrato de uma família mafiosa de Nova York que trava uma luta encarniçada para não ser engolida por outras cinco famílias concorrentes. O chefe da família, Don Vito Corleone, assume ares de um verdadeiro empresário, na defesa de seus negócios, por acaso ilegais.

Marlon Brando interpretando Don Vito, o chefe da família Corleone

A abertura do filme é um exemplo incomum de simplicidade e eficiência. Um imigrante italiano expõe a Don Vito o drama de sua filha, vítima de violência que não recebeu a devida reparação da Justiça. Por isso, ele quer vingança contra a agressão impune. A primeira frase do imigrante é ouvida com a tela completamente escura. Em seguida aparece o seu rosto, escassamente iluminado. Daí, o quadro vai-se abrindo lentamente até aparecer o ouvinte, em completa escuridão. No pacto entre eles combinado, o padrinho providenciará o acerto de contas com o agressor, ficando de cobrar o favor quando precisar dos serviços do imigrante. A cena inicial expõe, assim, a suma de todo o filme.

Do tenebroso escritório, onde se tramam negócios ilícitos, passa-se ao espaço externo ensolarado, em que acontece a festa de casamento de Connie, a caçula de Don Vito. Eis a razão por que a colônia de ítalo-americanos faz romaria ao escritório do padrinho para beijar-lhe a mão e pedir favores: nenhum siciliano recusa um pedido de favor no dia do casamento da filha. E a ocasião é favorável à reunião dos mafiosos, porque a polícia não intervém, limitando-se a observar à distância.

A festa é um primor de mise-en-scène. Ao tempo que recria uma celebração italiana típica, o diretor Francis Ford Coppola aproveita-a para introduzir as principais personagens e apresentar os membros da família Corleone, com seus caracteres bem definidos. Santino, o primogênito, tem temperamento explosivo, o que não é bom para os negócios da família. Fredo é uma figura inexpressiva, mais bem dotada de coração que de cérebro. Tom Hagen, espécie de filho adotivo, é advogado e atua como conselheiro da família. Michael, que é considerado instruído e herói da Segunda Guerra Mundial, aparenta ter o perfil adequado para ser o sucessor do pai. No entanto, o pai almeja para ele uma carreira política, por isso é mantido distante do jogo sujo no qual a família vive enredada.

Personificada por atores talentosos, contando inclusive com um Marlon Brando soberbo no papel de Don Vito, a família Corleone representa uma máfia glamourizada, distante dos meliantes da máfia real. A intenção, no entanto, era fazer dos Corleone uma alegoria de poderosa família capitalista, com vínculos no meio político, na organização judiciária e na imprensa.

Al Pacino interpretando Michael Corleone, o filho mais novo de Don Vito

Um diálogo entre Michael e a namorada, Kay, abre uma fresta por onde se pode penetrar nessa grande ironia do filme. Michael diz a ela que está trabalhando com o pai, o qual não é diferente de nenhum homem poderoso que tenha responsabilidade por outras pessoas, como um senador ou um presidente. Kay tacha-o de ingênuo, pois senadores e presidentes não matam pessoas, ao contrário do pai dele. Ele encerra a conversa ironizando: “Oh… Quem está sendo ingênuo, Kay?”

O conflito de interesses que opõe os Corleone às demais famílias dá ensejo a intrigas e traições, que redundam em manifestações de violência. De um lado, Don Vito se nega a participar do tráfico de drogas, negócio rendoso que suscita a cobiça dos adversários. De outro, os demais chefões, necessitados de proteção para o tráfico, pressionam Don Vito a lhes permitir o compartilhamento do poder que ele detém junto a políticos e juízes. As mortes daí decorrentes são estritamente negócios, segundo se declara, nada têm a ver com sentimentos pessoais.

Nesse confronto de forças, Don Vito acaba baleado gravemente, e Santino, que o substituía, é assassinado. Combalido e sem alternativa, Don Vito passa o comando dos negócios a Michael. Este logo cogita de agir dentro da legalidade, concentrando os investimentos em Las Vegas, onde a família já mantinha sociedade em hotel e cassino. Para realizar seu objetivo, Michael acaba atritando-se com o sócio e, com isso, abre nova frente de combate. Mas, calculista frio como ele só, nem titubeia para adotar uma solução radical, tratando o crime e a política como se fossem dois lados da mesma moeda.

Aproveitando-se do batizado do bebê de Connie, do qual será o padrinho, Michael planeja a eliminação, de um só golpe, dos chefes das cinco famílias rivais. Os acontecimentos que se desenrolam nesta parte são o ponto alto do filme. Editada com maestria, a sequência do batismo resultou profundamente irônica, na qual as palavras sacramentais comentam, por contraste, as imagens da matança. Ressalta-se a profanação — um chefe de família católico usar o batismo com propósito tão atroz.

O ritmo lento, reflexivo do filme só é quebrado esporadicamente. E, na maioria das vezes, por ações de Connie, com seus problemas conjugais, ou de Santino, que reage sempre com impetuosidade em defesa da irmã. É surpreendente que, num tempo em que os filmes abusavam de corre-corres, perseguições de automóveis, movimentos bruscos de câmera e zuns rápidos, Coppola tenha optado pela fluidez de movimentos, tanto dos atores quanto da câmera.

Não há um único exemplo de câmera subjetiva, que ocorre quando esta assume o ponto de vista de qualquer personagem em cena. Todo o tempo, ela se comporta como um narrador neutro. Nas cenas de assassinato de Luca Brasi ou da dupla Sollozzo e McCluskey, conseguiu-se a proeza de passar a ideia de frieza absoluta. Isto foi possível graças à redução a quase zero dos movimentos de câmera. Em situações tais, se esta se move, passa a sensação de que alguém está nervoso, o que mudaria tudo.

Poucas vezes se viu, em um filme, integração tão completa entre o trabalho da câmera e o dos atores. Gordon Willis, o diretor de fotografia, adotou lentes que possibilitaram a construção de um visual próximo ao dos filmes da década de 1940, na qual se passa a maior parte do filme. E os atores, por sua vez, imprimiram tamanha verossimilhança aos respectivos papéis que as personagens parecem gente de carne e osso. Resultado: é como se a câmera tivesse captado a vida mesma acontecendo.

Para completar, a trilha composta pelo mago Nino Rota colou-se às imagens de forma definitiva. Diante do tema nostálgico, que evoca a terra natal dos imigrantes, somente os de alma insensível ficariam indiferentes. Mas é no interlúdio pastoral passado na Sicília, onde Michael se refugia após cometer duplo assassinato, que a música atinge o seu máximo poder encantatório, contribuindo para eternizar as imagens bucólicas intercaladas entre momentos trágicos.

O Poderoso Chefão (1972), Francis Ford Coppola
O Poderoso Chefão (1972), Francis Ford Coppola

Um detalhe precioso liga “O Poderoso Chefão” aos filmes de James Bond, que, na época em que este foi produzido, atraíam grande público por conterem excitantes cenas de ação, justo o que neste se procurou evitar. Na primeira cena, Vito Corleone acaricia demoradamente um gato que tem no colo. Nos filmes do agente 007, o chefe da Spectre, Ernst Stavro Blofeld sempre aparece acariciando um gato. Como ele é um arquicriminoso, seu gato é um belo e bem tratado angorá. Já o gato de Corleone, chefe de modesta organização criminosa, é um simples vira-lata. Um toque de humor sutil, como outros que se encontram no filme.

Não há como fugir, enfim, de uma pergunta insistente: como é que uma narrativa tão vagarosa, com duração aproximada de três horas, pode ser tão atraente? Uma explicação possível seria, quem sabe, o fato de a história da família Corleone ter sido tramada com tanto engenho e arte e atingido tal densidade que o filme nunca entedia. E, como a sua dramaturgia não envelheceu, permanece vigoroso e provocador como na época da sua estreia. Isto é raro, raríssimo, na história do cinema.

Herondes Cézar

É crítico de cinema.