Quando se fala em xadrez, logo vêm à mente todos os grandes enxadristas que marcaram época e fizeram história, no cenário mundial, ao longo dos tempos. Garry Kasparov, Bobby Fischer, Mikhail Tal, José Raul Capablanca e Magnus Carlsen são nomes quase indiscutíveis em uma organizada lista de gênios da modalidade. De logo, percebe-se a ausência de mulheres nesses rankings e surge o questionamento sobre o porquê disso. As explicações não podem jamais ser simplistas e exigem um debruce sobre o histórico do jogo e os incentivos para ambos os sexos. Perguntado sobre essa discrepância, o enxadrista Nigel Short foi enfático ao dizer para a revista “New in Chess” que as mulheres não teriam “cérebro” para disputar com os homens, pois o raciocínio delas funcionava de uma maneira diferente. Curiosamente, o renomado britânico perdeu em oito oportunidades para uma mulher: JJudit Polgár.
Laszlo Polgár, um pedagogo húngaro, resolveu ter por objetivo desafiar a questão da genialidade humana. Para ele, segundo dizem, gênios não eram nascidos nessa condição, mas, sim, produzidos para o brilhantismo. Com essa visão, arquitetou planos para as suas três filhas serem máquinas enxadristas. Assim, Susan, Sofia e Judit, mesmo antes de nascerem, já estavam predestinadas aos flancos dos tabuleiros, tendo que passar, desde os primórdios, por um treinamento intenso e, de certo ponto, controverso. Para se ter uma noção, as duas meninas mais velhas enfrentavam enxadristas em um clube húngaro de xadrez cujas condições de insalubridade eram impróprias para as suas tenras idades. As fichas eram apostadas nas duas, mas, em um momento posterior, a família percebeu que o verdadeiro talento estava na pequena Judit. A garota era um fenômeno.
Judit foi campeã mundial do Torneio de Xadrez para menores, ainda aos 12 anos. Aos 14, em 1989, conseguiu vencer um torneio em Roma com a presença de Grandes Mestres enxadristas. Aos 15 anos, Judit alcançou o título de Grande Mestre, sendo, entre homens e mulheres, a mais nova da história até então. Aos 17, enfrentou nada menos do que o campeão mundial Gary Kasparov, em uma controversa partida que terminou empatada, após ele efetuar um movimento proibido — que, mais tarde, Judit confessou não ter relatado na hora pela insegurança perante o Grande Mestre. Porém, mesmo com esses feitos incríveis, a principal luta de Judit não era apenas no âmbito do jogo e, também, não se fazia individual. Havia uma questão maior: o machismo prevalente no xadrez, latente como em todo o resto da sociedade.
A questão não é das mais simples. Recentemente, uma brasileira chamada Ellen Bail relatou em uma rede social o mundo, completamente hostil às mulheres, que é o dos enxadristas. Em seu depoimento, afirmou que, desde os 11 anos, sofria constantes assédios de homens 20 anos mais velhos, além de ter que adequar as suas vestimentas, como forma de evitar “piadas” e cortejos desagradáveis — sendo bastante eufêmico. Essa realidade não é nada diferente das que vivem as mulheres que resolvem se dedicar ao xadrez. Muito por isso, o jogo não é em nada aprazível para uma mulher se aventurar sem enfrentar os obstáculos por seu gênero. Além das atitudes machistas, existe ainda uma desconfiança na capacidade de as mulheres enfrentarem os homens de igual para igual. E daí porque a saga de Judit é emblemática e encorajadora, ainda que não hegemônica.
Segundo a própria Federação Internacional de Xadrez (FIDE), apenas 15% dos jogadores com licença são mulheres. Jamais alguma delas alcançou o posto de campeã mundial e existem menos de 40 grandes mestres ao redor do globo. Judit Polgár, por isso, representou e continua a simbolizar a fagulha necessária para incendiar o preconceito existente no xadrez. Não à toa, em 2002, quando ela novamente enfrentou Gary Kasparov e saiu vitoriosa, fez não apenas justiça com o confronto passado, mas demonstrou a todos que as desconfianças são, na verdade, o impiedoso e vociferante machismo disfarçado. Kasparov, assim como Nigel Short, lançava dúvidas sobre a capacidade de mulheres conseguirem derrubar homens no xadrez. A resposta, para ambos, veio da pior e mais amarga forma possível, com nome e sobrenome: Judit Polgár. Teria ela, pois, adquirido um cérebro masculino? Não. Eram os que duvidavam que mereciam ter questionados os cérebros. Um verdadeiro xeque-mate da dama imortal.