Não há morte que não pareça precoce. Eu me recordo quando minha avó, já idosa, com netos crescidos e vasto caminho percorrido, chorou a morte de sua mãe, com fragilidade que beirava o desamparo. Minha bisavó, no alto de seus 95 anos, partia deixando seus filhos perdidos na angústia que embaça o juízo e faz quase um século de vida parecer pouco quando se trata de quem amamos. Naquele momento, eu entendi que, ainda que fossem duzentos os anos vividos, o adeus sempre vai ser essa navalha afiada que sangra um pouquinho do amor que nos mantém de pé.
Quando ocorre aos 42 anos, porém, a partida não só parece adiantada como injusta. É como se estivesse acoplado à inevitável dor da separação um desajuste da ordem natural das coisas, surrupiando sonhos. Soa como um deboche do tempo que subverteu a lógica e sequestrou o futuro que tinha tudo pra acontecer. Ver morrer cedo quem abundava vida bagunça nosso senso, interrompe nossa paz, inquieta porque machuca. A gente precisa que o mundo faça um pouco de sentido pra continuar acreditando nele. E tem sido muito difícil equilibrar a fé que nos permite a resignação com os infortúnios que nos sugerem a revolta.
A morte de Paulo Gustavo sepultou um pedaço da esperança de uma nação que, há algum tempo, já vem cambaleando como um bêbado sobre paralelepípedos. Por mais de um mês, o país mergulhou em oração e celebrou cada sinal de melhora de alguém que poucos conheciam de perto mas que, por meio da arte, fez-se presente e estimado com proeza rara. Clamar pela saúde de Paulo Gustavo tornou-se símbolo dos pedidos pela saúde de milhares de filhos, pais, companheiros, irmãos e amigos que, igualmente, agonizavam em seus corpos as agruras da pandemia. Ao torcer pelo Paulo, torcíamos também para que sua força, sua alegria e sua capacidade de nos fazer transbordar em riso prevalecessem ao caos sombrio que nos assola.
A notícia de sua partida cobriu de luto parte de um povo farto da tristeza, do descaso, da falta de afeto vestida de gala bailando efusiva em aglomero e egoísmo. Para a família e amigos ficará a saudade por horas, noites, estações. E, para um país que gargalhou tão forte com o artista, surge um vazio estranho, forjado pela ausência de tudo que ainda esperávamos que ele fizesse nos palcos, nas telas, nas nossas salas de tv onde se fez íntimo.
Ironicamente, a finitude, única certeza que carregamos, é também a causadora dos nossos maiores espantos. Morrer não nos parece razoável, ainda que cláusula pétrea das leis de Deus. Ver morrer quem trilhava menos da metade da história que merecia escrever é desconcertante. A redenção, talvez, esteja nos enredos que a vida, ora implacável, ora generosa, permitiu que fossem traçados. A eternidade, desafio inatingível para a ciência e a medicina, é exclusividade da arte. Deve ser uma honra encerrar a jornada sabendo que fez milhões sorrirem com você. Em meio à aflição, há de reconhecer que, antes de puxar para si os que queríamos sempre por perto, o céu permite que eles nos façam bem a ponto de nos fazerem falta.
Há mais de um ano, estamos sufocados pela anormalidade. Temos medo do vírus, da solidão, da falta de rumo, de ar, de jeito, de solução. Sofremos pela morte de Paulo Gustavo porque choramos ali, também, a perda dos nossos. Na morte de quem, por sua relevância, parece próximo, revisitamos a despedida dos de dentro de casa. Sedentos por felicidade, ficamos ainda mais carentes com o adeus a quem, até então, pensávamos que só podia nos fazer chorar de rir. Choramos porque estamos cansados e porque projetamos em sua genialidade cômica a expectativa de que logo voltaríamos a ser leves. Nas redes, viralizou uma mensagem de esperança gravada por ele pouco antes da doença. Talvez tenha sido o prenúncio do que estava por vir. O recado positivo deixado como legado para um país cada vez mais órfão do riso, do brilho, do júbilo.