“Herói de nada, cometia erros. Herói é gente que vive com salário-mínimo.” Foi o que disseram. Iconoclastia anda na moda. Mas é bom lembrar que pastores já quebraram santas em rede nacional — e alguns acharam ruim, outros nem tanto; e fanáticos vandalizaram terreiros de candomblé, quando alguns — alguns que não estavam entre os alguns ali acima — acharam péssimo e outros se calaram.
Quebrar ídolos e vilipendiar memórias é bom quando o ídolo ou a memória mora longe da minha aldeia.
Ídolos, mitos e heróis existem na imaginação humana há muito, muito tempo. Os gregos supunham que eles eram semideuses, filhos de deuses ou deusas com homens ou mulheres. A partir dessa condição, seriam capazes de feitos sobre-humanos, como os doze trabalhos de Hércules ou a força extraordinária de Aquiles.
Mas eles tinham pontos fracos. Aquiles foi banhado por sua mãe, a deusa Tétis, no Rio Estige, para lhe conferir a invulnerabilidade. Mas, ao segurá-lo por um dos pés, ela deixou com que seu calcanhar não submergisse. Páris, então, encontrou ali o local para dirigir a flecha envenenada que tirou a vida do herói que matara seu irmão Heitor. Hércules, filho de Zeus, herdou do pai a lascívia: traiu a esposa e recebeu dela uma túnica envenenada, com a qual, inadvertidamente, se vestiu, apenas para depois não conseguir se desvencilhar dela e se jogar ao fogo para morrer.
Precisamos de heróis? Muito provavelmente não. Mas é errado querer conviver com essa ideia de que alguns de nossos semelhantes possuem qualidades sobre-humanas? Claro que não. Há toda uma legião de apaixonados pelo Batman que deixarão de me seguir quando descobrirem que, para mim, Anakyn Skywalker é a criatura mais heroicamente heroica que já pisou em qualquer canto do universo.
Vão me dizer que é puro escapismo, apenas uma forma de fugir da realidade e não querer enfrentar os problemas que o mundo de verdade precisa combater. Veja só: já faz muito tempo que eu me cansei de querer estar do lado certo da história; eu quero é engolir as semanas o mais rápido possível para poder dizer — de preferência com alguma figurinha do Fábio Assunção — que sexta-feira é dia de maldade, hoje é dia de rock, bebê!
E mais: aquela turma lá do início, que chamaram de heróis — bombeiros, professores, gente que vive com salário-mínimo — não dá a mínima para essa bobagem. Eles, como eu e você, não querem assumir esse ônus. É muita responsabilidade, se é que me entendem.
Sim, eu quero meus heróis e me irmano com quem os queira. E quem não os quer que vá viver sua vida e quebre seus ídolos em paz, mas longe da minha aldeia. Tenho certeza de que se alguém atravessar a rua para sujar com os pés os capachos vermelhos das casas do seu lado do bairro, a cobra vai fumar.
Insisto nisso e repito tudo com muito vagar, porque venho até aqui desviando da lembrança horrível daquele 1o de maio de 1994. Anos antes, precisamente em 15 de janeiro de 1985, este que vos fala, acamado por uma infecção, assistiu pela televisão a eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral. Meses depois, igualmente pela tevê, vi Antônio Britto anunciando o pior desfecho possível para as semanas de agonia que cercaram a sua internação.
Foi a primeira comoção nacional que eu testemunhei — mentira, a primeira foi a eliminação da Seleção de 1982 na tristeza do Sarriá — mas digamos que foi a minha primeira comoção heroica, porque Tancredo, a partir daí, contra todos os prognósticos, virou herói. Não interessa, para essa conclusão, seus erros passados ou qualquer premonição do que seria o seu governo. Vimos logo acima: heróis também erram; heróis também têm defeitos.
E foi no mesmo ano de 1985 que, depois da épica corrida em Mônaco/1984, eu vi, mais uma vez através dela — a televisão (que saudade dela!) — o nascimento de uma lenda, o Rei da Chuva, vencedor no Autódromo do Estoril, sob impiedosa tormenta, com mais de um minuto de frente para o segundo colocado.
Justo num domingo. Justo em 21 de abril de 1985. Justo no dia em que Tancredo perdeu a corrida contra a diverticulite.
Agnósticos e iconoclastas: eu sei, eu sei, tudo coincidência. Mas heróis também se fazem do acaso: Páris, por exemplo, aquele que raptou Helena e deu início à Guerra de Troia, nunca pediu a Zeus para ser o juiz que escolheria, dentre Hera, Atena e Afrodite, qual seria a deusa mais bela. Mas o mulherengo Zeus o escolheu, veja só, porque era honesto, logo ele, que elegeu Afrodite, que lhe prometera o amor da mulher mais bonita do mundo na época. Sim, ela: Helena.
Aliás, uma estatística interessante: dos seis primeiros colocados daquele GP de Portugal de 1985 (apenas os seis primeiros faziam pontos naquela época), quatro já viraram heróis: Ayrton Senna, Michele Alboreto, Elio de Angelis e Stefan Bellof.
Mas não para por aí. Conta-se que o primeiro atleta olímpico que recebeu a Medalha Pierre de Coubertin foi Eugenio Monti. Assim como Bento Gonçalves enviou auxílio às tropas inimigas durante a Guerra dos Farrapos, Monti emprestou um parafuso reserva de seu trenó a um adversário britânico, que venceu a prova. Criticado por seus compatriotas italianos, ainda fez questão de lembrar que o rival venceu porque foi melhor, e não porque recebeu um parafuso emprestado. Para completar, após sua morte, seu fígado foi doado para transplante.
Pois bem. Se a Fórmula 1 fosse esporte olímpico (o que, é claro, não tem nada a ver), Senna certamente mereceria a honraria Coubertin depois de interromper seu próprio treinamento para o GP da Bélgica de 1992, pular do seu carro no meio da pista, em meio aos outros que vinham em alta velocidade, para desligar a ignição do carro de Eric Comas, desfalecido no cockpit depois de uma batida forte, para evitar que um vazamento de gasolina causasse alguma explosão e um mal maior.
Não basta? No cockpit da Williams FW-16 de Senna, que sempre nos vem à memória como aquele carro que se espatifou na Tamburello, foi encontrada uma bandeira da Áustria, a fim de homenagear Roland Ratzemberger, morto no dia anterior nos treinos para o GP de San Marino de 1994.
Ainda não é o suficiente? Só depois da morte do piloto vieram à tona diversas ações humanitárias e caritativas que ele fizera, aliás, guardando o mandamento de Mateus 6:1-3: “Guardai-vos de fazer a vossa esmola diante dos homens, para serdes vistos por eles; aliás, não tereis galardão junto de vosso Pai, que está nos céus. Quando, pois, deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão. Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita”.
Isto faz de Senna um mito, um ídolo, um herói? Depende. Para quem os quer de carne e osso, mais parecidos com a nossa matéria humana do que os personagens da Marvel, sim. Teve todos os predicados — desde a exímia habilidade ao volante à prática de atos como os acima descritos —, o que se somou à morte precoce e trágica. Veja: assim como não temos noção da imagem de um Aquiles bêbado e barrigudo pedindo para Briseide buscar mais uma cerveja na geladeira, o mesmo destino coube a Senna, sempre teremos dele a imagem do jovem de cabelo desalinhado e vontade de vencer a qualquer custo.
Vontade, aliás, que, ao que parece, constituiu o maior de seus defeitos: não teve escrúpulo de se vingar de Prost, jogando nele o carro em 1990 como o baixinho francês fez com ele em 1989. Refugou Derek Warwick na Lotus em 1986, para não ter um companheiro de equipe que pudesse fazer frente a sua preferência na equipe. E, claro, devia ter muitas outras coisas, afinal, relembremos, heróis também erram.
Mas, para quem não quer heróis, não precisa de tequila para espairecer, nem de açúcar para produzir endorfina, não tem problema, mas atenção: se, lá no fundinho, bem escondido mesmo no mais escuro recôndito da sua alma, existir alguém que você admira tanto a ponto de se sentir chateado quando alguém o desqualificar, vale, de novo, a advertência: vilipendiar memórias é bom quando é longe da sua aldeia.