O escritor americano Philip Milton Roth morreu em 2018, aos 85 anos. A perda do homem é grande, mas fica sua vasta e excelente obra. Frise-se que estava concluída, ele não estava mais escrevendo ou pelo menos havia desistido de publicar, desde o romance “Nêmesis”. Fala-se sempre que não ganhou o Nobel de Literatura, ao contrário de seu inspirador, Saul Bellow. Do ponto de vista estritamente literário, não tem a mínima importância. O Nobel vale porque torna os escritores mais conhecidos e eternamente canônicos. Mas há nobéis muito menos lembrados do que os não-nobelizados Liev Tolstói, Marcel Proust, James Joyce, Lezama Lima, Guimarães Rosa, Jorge Luis Borges e Carlos Drummond de Andrade (o maior poeta da Língua Portuguesa). O primeiro parágrafo de um romance não é uma síntese da história e de sua linguagem. É um prenúncio. Mostra sua perícia ao iniciar uma história e sua narrativa firme e límpida.
Colhi o primeiro (muito pequeno) e o segundo parágrafos de “O Teatro de Sabbath” — talvez seu principal romance. A vibração do livro, sua força literária, com personagens irresistíveis (ou uma personagem irresistível), ainda que não necessariamente simpáticas, persiste do começo ao fim da história. A tradução perfeita de Rubens Figueiredo apreende à perfeição a agressividade visceral de Mickey Sabbath, só às vezes contida pela linguagem poros, flexível e luminosa de Roth. O leitor atento sente o pulsar do livro, a linguagem perceptiva capta a, digamos, malignidade explosiva do protagonista. Fica-se com a impressão que “O Teatro de Sabbath” é um romance de Dostoiévski reescrito por Liev Tolstói. Harold Bloom, que parece perceber Shakespeare até no bater das asas do mosquito da dengue, diria que o bardo inglês está presente no romance de Roth. E está mesmo.
“O Complexo de Portnoy” — o mais divertido e cativante dos romances de Roth, ao lado de “Lição de Anatomia” — e “Pastoral Americana” (registra-se que a vida não tem como ser perfeita e a força do acaso) são rivais de “O Teatro de Sabbath”. Roth fala centralmente do mundo judaico, mas, no fundo, fala de todos nós. “Homem Comum” é um retrato atento do mundo da velhice — que é um massacre (ou um naufrágio, segundo o economista brasileiro Roberto Campos). É uma história sem contemplação e bom-mocismo. Roth é, por vezes, dolorosamente cruel.
“Complô Contra a América” é um romance distópico — imagina como teria sido a América se Charles A. Lindbergh, pró-nazismo de Adolf Hitler, tivesse sido eleito presidente dos Estados Unidos, e não Franklin D. Roosevelt.
“Indignação” é sobre moralismo e amor excessivo (de um pai pelo filho — um amor enlouquecedor; a mãe não fica atrás, por sinal). O romance sofre influência de Machado de Assis, o de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” — a história também é narrada por um morto. Roth apreciou o livro do brasileiro e decidiu, não copiar, e sim usar sua fórmula narrativa.
Não se deve ocultar um fato decisivo: a prosa iluminada de Roth, de precisão milimétrica, ganhou traduções esmeradas de Paulo Henriques Britto, Jorio Dauster, Beth Vieira e Rubens Figueiredo. Traduções rigorosas são decisivas para manter a qualidade literária de autores tão refinados e cuidadosos com a linguagem e suas filigranas quanto Roth. A Companhia das Letras trata o criador da personagem Nathan Zuckerman como se deve tratar um deus da literatura — muito bem, quer dizer, com imaginárias luvas de diamante.
O Complexo de Portnoy (1969)
“Ela estava tão profundamente entranhada em minha consciência que, no primeiro ano na escola, eu tinha a impressão de que todas as professoras eram minha mãe disfarçada. Assim que tocava o sinal ao fim das aulas, eu voltava correndo para casa, na esperança de chegar ao apartamento em que morávamos antes que ela tivesse tempo de se transformar. Invariavelmente ela já estava na cozinha quando eu chegava, preparando leite com biscoitos para mim. No entanto, em vez de me livrar dessas ilusões, essa proeza só fazia crescer minha admiração pelos poderes dela. Além do mais, era sempre um alívio não surpreendê-la entre uma e outra transformação — muito embora eu jamais deixasse de tentar; eu sabia que meu pai e minha irmã nem faziam ideia da natureza real de minha mãe, e o peso da traição que, imaginava eu, recairia sobre meus ombros se alguma vez a pegasse desprevenida seria demais para mim, aos cinco anos de idade. Creio que eu chegava a temer a possibilidade de ser eliminado caso a flagrasse ao entrar voando pela janela do quarto, vindo da escola, ou então surgindo pouco a pouco, um membro de cada vez, emergindo do estado de invisibilidade, com avental e tudo.” (Companhia das Letras, tradução de Paulo Henriques Britto, 261 páginas)
Lição de Anatomia (1983)
“Todo homem, quando fica doente, quer a mãe; se ela não estiver por perto, outras mulheres terão de servir. Zuckerman estava se ajeitando com quatro mulheres. Nunca tivera tantas de uma vez, nem tantos médicos ao mesmo tempo, nem bebera tanta vodca, nem trabalhara tão pouco, nem conhecera um desespero tão terrível. Mas não parecia ter nenhuma doença que pudesse ser levada a sério. Apenas aquela dor—pescoço, braços, ombros, uma dor que tornava difícil caminhar mais que alguns quarteirões, ou mesmo ficar em pé mais tempo. Só ter pescoço, braços, ombros, era como carregar outra pessoa. Dez minutos fora de casa fazendo compras na mercearia, e ele tinha de correr para casa e deitar-se. E só podia levar para casa, de cada vez, uma sacola de compras leve; mesmo assim, segurando-a contra o peito, como um velho de oitenta anos. Levá-la pendurada ao lado apenas piorava a dor. Era doloroso curvar-se e arrumar a cama. Era doloroso parar-se junto do fogão, segurando a espátula, à espera de que um ovo fritasse.” (L&PM, tradução de Lya Luft, 210 páginas)
Pastoral Americana (1987)
“O Sueco. No tempo da guerra, quando eu ainda era um estudante da escola primária, esse era um nome mágico nos arredores de Newark, mesmo para os adultos, havia apenas uma geração transferidos do gueto da velha rua Prince, no centro da cidade, e ainda não tão perfeitamente americanizados a ponto de ficarem deslumbrados com a destreza de um atleta da escola secundária. O nome era mágico; bem como o rosto anômalo. Entre os poucos estudantes judeus de boa compleição física em nossa escola pública secundária frequentada predominantemente por judeus, nenhum possuía nada sequer remotamente parecido com a máscara viquingue implacável e a mandíbula enérgica daquele louro de olhos azuis nascido em nossa tribo com o nome de Seymour Irving Levov.” (Companhia de Letras, 478 páginas, tradução de Rubens Figueiredo)
O Teatro de Sabbath (1995)
“Ou você abre mão de trepar com as outras ou o nosso caso está encerrado.” Eis o segundo parágrafo: “Esse foi o ultimato enlouquecedoramente inverossímil, totalmente imprevisto, que a mulher de cinquenta e dois anos apresentou, chorando, ao seu amante de sessenta e quatro anos, no aniversário de um relacionamento que persistira com uma surpreendente licenciosidade—e este, de forma não menos surpreendente, era o segredo deles — durante treze anos. Mas agora, com o refluxo das infusões hormonais, com a próstata inchando e, na certa, com apenas uns poucos anos de potência mais ou menos segura para ele — e com um resto de vida que talvez não fosse muito além disso —, aqui, ao se aproximar do final de tudo, ele, sob pena de perde-la, se via compelido a fazer das tripas coração.” Ela era Drenka Balich; ele, Mickey Sabbath. (Companhia das Letras, 497 páginas, tradução de Rubens Figueiredo)
Casei com um Comunista (1998)
“O irmão mais velho de Ira Ringold, Murray, foi meu primeiro professor de inglês na escola secundária e foi por intermédio dele que fiquei amigo de Ira. Em 1946, Murray acabara de voltar do exército, onde servira na décima sétima Divisão Aerotransportada, na batalha do Bulge; em março de 1945, dera o famoso pulo para o outro lado do rio Reno, que assinalou o começo do fim da guerra na Europa. Ele era, naquele tempo, um cara atrevido, desaforado, careca, não tão alto quanto Ira, mas esguio e atlético, que pairava acima de nossas cabeças num estado de vigilância perpétua. Era completamente natural em suas maneiras e atitudes, ao passo que na fala se mostrava verbalmente copioso e intelectualmente quase ameaçador. Sua paixão era explicar, esclarecer, fazer-nos compreender, e o resultado era que demonstrava cada novo assunto de nossas conversas em seus componentes principais da mesma forma meticulosa como analisava frases no quadro-negro. Tinha um talento especial para dramatizar o interrogatório, lançar um poderoso feitiço narrativo mesmo quando era estritamente analítico e esmiuçar em voz alta, no jeito lúcido, aquilo que líamos e escrevíamos.” (Companhia das Letras, 422 páginas, tradução de Rubens Figueiredo)
A Marca Humana (2000)
Foi no verão de 1998 que meu vizinho Coleman Silk — que até se aposentar, dois anos antes, fora professor de letras clássicas na Faculdade Athena por vinte e tantos anos, além de atuar por mais dezesseis anos como decano — confidenciou-me que, aos setenta e um anos de idade, estava tendo um caso com uma faxineira de trinta e quatro que trabalhava na faculdade. Duas vezes por semana ela fazia a limpeza da agência local dos correios, uma pequena construção cinzenta de madeira que parecia ter servido de abrigo a uma das famílias de migrantes que fugiram da grande seca do Oklahoma nos anos 30, e que, isolada e melancólica, em frente ao posto de gasolina e à mercearia, exibe a bandeira nacional no cruzamento das duas estradas que assinalam o centro comercial desta cidadezinha serrana. Coleman viu a mulher pela primeira vez, passando o esfregão no assoalho dos correios, quando foi lá num final de tarde, não muito antes da hora de fechar, para pegar sua correspondência — uma mulher magra, alta, angulosa, com cabelos louros já um pouco grisalhos presos num rabo-de-cavalo e aquelas feições duras e severas que costumamos associar às matronas carolas e trabalhadeiras que levavam vidas sofridas nos primórdios da Nova Inglaterra, mulheres sérias dos tempos coloniais, confinadas pela obediência à moralidade dominante. Chamava-se Faunia Farley e mantinha todo e qualquer sofrimento que padecesse oculto por trás de um desses rostos ossudos e inexpressivos que não escondem nada e traem uma solidão imensa. Faunia morava num quarto numa fazenda ali perto, onde ajudava a ordenhar as vacas como parte do pagamento do aluguel. Tinha completado dois anos do colegial.
Complô Contra a América (2004)
“O medo domina estas lembranças, um medo perpétuo. Toda infância, é claro, tem seus terrores, mas me pergunto se eu não teria sido uma criança menos assustada se Lindbergh não tivesse chegado à Presidência ou se eu não fosse filho de judeus.” Segundo parágrafo: “Quando ocorreu o choque inicial, em junho de 1940 — o lançamento da candidatura presidencial de Charles A. Lindbergh, o heroico aviador americano de renome mundial, na convenção do Partido Republicano, realizada em Filadélfia —, meu pai estava com trinta e nove anos; era corretor de seguros, tinha apenas o curso primário e ganhava um pouco menos de cinquenta dólares por semana, o que era suficiente para pagar as contas principais sem atraso mas não dava para quase mais nada. Minha mãe — que não pôde realizar o projeto de cursar a escola normal por falta de dinheiro, que depois de concluir o secundário continuou morando com os pais enquanto trabalhava como secretária, que conseguiu fazer com que não nos sentíssemos pobres durante a pior fase da Depressão utilizando o salário que meu pai lhe entregava todas as sextas-feiras com a mesma eficiência com que administrava a casa—tinha trinta e seis. Meu irmão, Sandy, que cursava a sétima série e tinha um talento prodigioso para o desenho, estava com doze anos, e eu, aluno da terceira série, embora pela minha idade devesse estar na segunda — e aprendiz de filatelista, inspirado, como milhões de outros meninos, pelo mais famoso colecionador do país, o presidente Roosevelt —, tinha sete”. (Companhia das Letras, 482 páginas, tradução de Paulo Henriques Britto)
Homem Comum (2006)
“Em torno da sepultura, no cemitério malcuidado, reuniam-se alguns de seus ex-colegas de trabalho da agência publicitária nova-iorquina, relembrando sua energia e originalidade e dizendo a sua filha, Nancy como fora divertido trabalhar com ele. Havia também pessoas que tinham vindo de carro de Starfish Beach, a comunidade de aposentados da costa de Nova Jersey onde ele morava desde o Dia de Ação de Graças de 2001—os idosos que recentemente tinham sido seus alunos num curso de pintura. Vieram também os dois filhos, Randy e Lonny, homens de meia-idade, filhos do turbulento primeiro casamento, que eram muito próximos à mãe e que, em consequência disso, do pai conheciam pouco de bom e muito de péssimo, e só estavam ali por obrigação, mais nada. O irmão mais velho dele, Howie, e sua cunhada também estavam presentes, tendo vindo da Califórnia de avião na véspera; e também uma de suas três ex-esposas, a do meio, a mãe de Nancy, Phoebe, uma mulher alta, magérrima, de cabelo branco, cujo braço direito pendia inerte ao lado do corpo. Quando Nancy lhe perguntou se ela queria dizer alguma coisa, Phoebe balançou a cabeça, tímida, mas logo em seguida começou a falar em voz baixa, uma fala um pouco arrastada. ‘É muito difícil de acreditar. Fico lembrando o tempo todo dele nadando na baía — só isso. É o que vejo, ele nadando na baía.’ E mais Nancy, que havia negociado com a agência funerária e telefonado para as pessoas que compareceram ao enterro, para que não estivessem presentes apenas ela, sua mãe, o irmão e a cunhada dele. Havia uma única pessoa presente que não tinha sido convidada, uma mulher atarracada com um rosto redondo e simpático, de cabelo pintado de ruivo, que simplesmente apareceu no cemitério e apresentou-se como Maureen, a enfermeira particular que havia cuidado dele após a cirurgia de coração, anos antes. Howie lembrava-se dela, e foi dar-lhe um beijo no rosto.” (Companhia das Letras, 131 páginas, tradução de Paulo Henriques Britto)
Indignação (2008)
“Cerca de dois meses e meio depois que as bem treinadas divisões da Coreia do Norte, armadas pelos comunistas soviéticos e chineses, atravessaram o paralelo 38 e penetraram na Coreia do Sul em 25 de junho de 1950, dando início às agonias da Guerra da Coreia, eu entrei para a Robert Treat, uma pequena universidade no centro de Newark que devia seu nome ao homem que fundou a cidade no século XVII. Fui a primeira pessoa de nossa família a entrar na universidade. Nenhum de meus primos tinha ido além do ginásio, nem meu pai ou seus três irmãos haviam completado o primário. ‘Trabalhei para ganhar a vida’, disse-me meu pai, ‘desde os dez anos’. Ele era açougueiro e eu fazia as entregas de bicicleta no bairro durante todo o tempo em que cursei o ginásio, exceto quando jogava beisebol e nas tardes em que participava das disputas com outros colégios como membro da equipe de debatedores. Praticamente desde o dia em que deixei o açougue — onde vinha trabalhando para ele sessenta horas por semana desde a formatura no ginásio, em janeiro, até o início das aulas na universidade, em setembro —, quase a partir do dia em que comecei a frequentar a Robert Treat, meu pai passou a ter medo de que eu morresse.” (Companhia das Letras, 171 páginas, tradução de Jorio Dauster)
Nêmesis (2010)
“O primeiro caso de poliomielite naquele verão foi registrado no começo de junho, logo depois do Memorial Day, feriado que marca o começo da estação, num bairro pobre de italianos do outro lado da cidade. Ali onde morávamos, numa área do sudoeste chamada Weequahic e ocupada por judeus, nada soubemos sobre isso nem sobre os outros doze casos espalhados por quase toda Newark e mais distantes da nossa vizinhança. Só por volta do feriado de Quatro de Julho, quando quarenta ocorrências já haviam sido registradas na cidade, apareceu na primeira página do jornal vespertino um artigo intitulado ‘Autoridade médica alerta os pais contra a poliomielite’, no qual o dr. William Kittell, superintendente do Conselho de Saúde, orientava os pais a observarem de perto seus filhos e a contatarem um médico se qualquer criança apresentasse sintomas tais como dor de cabeça, garganta inflamada, enjoo, pescoço enrijecido, dor nas articulações ou febre. Embora reconhecesse que quarenta casos eram mais que o dobro do número normalmente registrado nos primórdios da estação de pólio, o dr. Kittell fazia questão de deixar absolutamente claro que a cidade de 429 mil habitantes de forma nenhuma estava sofrendo de algo que pudesse ser caracterizado como uma epidemia da doença. Naquele verão, como em todos os outros, havia motivos de preocupação e era necessário tomar as precauções higiênicas de praxe, porém até o momento não se justificava o tipo de alarme, ‘perfeitamente compreensível’, que os pais haviam exibido vinte e oito anos antes, durante o maior surto da doença — a epidemia de pólio de 1916 no nordeste dos Estados Unidos, quando ocorreram mais de 27 mil casos e 6 mil mortos. Em Newark, haviam sido observados 1360 casos e 363 mortes.” (Companhia das Letras, 194 páginas, tradução de Jorio Dauster)