Meti uma pastilha Hell’s na boca. Estava nervoso feito o diabo. Toquei em frente até o salão 9, final do corredor, onde jazia o corpo do Apolinário, que tinha morrido de rir aos 99, mesma idade do Rei Philip. Explico: Apolinário tinha o péssimo hábito de retirar a dentadura, depositá-la dentro de um copo de Bourbon e enfiar um caroço de pequi, por inteiro, na boca, sugando-o por incontáveis minutos dentro do arcabouço gengival, de olhinhos miúdos, fechadinhos, até que regurgitasse a iguaria com a polpa completamente raspada. Era uma mania de embrulhar o estômago, mesmo assim, ninguém ousava intervir no ritual repugnante de alguém que já tinha vivido por quase um século e tomado tiro de fuzil na Segunda Grande Guerra, por ocasião a tomada de Monte Castelo.
Certo dia, o procedimento deu ruim para o Apolinário: durante uma aglomeração familiar, que nem deveria ter acontecido por causa da pandemia pelo vírus javanês, enquanto degustava mais um dos seus caroços de pequi, alguém contou uma piada hilariante sobre a Rainha Elizabeth II, aludindo que a velhota procurava por um novo marido e que “esse noivo bem que podia ser o senhor, vovô”. O velhote, sempre bem humorado por causa da proximidade da morte, gargalhou. Mas, todo contentamento tem um custo.
Consequência funesta da gargalhada, Apolinário sofreu um involuntário espasmo diafragmático que culminou num redemoinho respiratório abrupto, uma inspiração violenta, que criou pressão negativa e sugou o liso caroço diretamente para a garganta. Não teve esse nem aquele que conseguisse desentalar a pelota gosmenta de sua goela senil. Um dos parentes, que servira como sargento na floresta amazônica devastada por grileiros, experimentado em práticas de sobrevivência sem oxigênio hospitalar, abriu espaço na multidão, abarcou o Apolinário por trás e executou a famosa manobra de Heimlich que ele tinha aprendido nos seus tempos de colégio militar. O máximo que conseguiu foi fraturar algumas costelas que, àquela altura do campeonato, não fariam nenhuma falta para funcionar os foles pneumáticos.
O corpo seguia velado sem as tradicionais honras militares. Nenhuma salva de festim foi providenciada. Ouvi estampidos do lado de fora do cemitério, mas, era apenas outro assalto à mão armada. O povo estava desempregado, cansado de política e sentia fome. Cumprimentei pessoas. Estiquei o pescoço. Dei uma espiadela no defunto, à distância. “Morreu que nem passarinho”, alguém sussurrou, a tentar se passar por íntimo do morto. “Passarinho? Só se foi morte à pedrada”, pensei em confrontar o boçal, mas, detive a indignação. Mesmo no auge da pandemia, ninguém ali usava uma máscara, exceto, o próprio Apolinário. Por via das dúvidas, besuntaram-no de álcool em gel, protegeram os orifícios e travaram a mandíbula. O papa-defuntos alertou que a traqueia, mesmo combalida, poderia expelir o corpo estranho feito uma rolha de espumante, num raro fenômeno cadavérico mais conhecido como sopro da morte.
Aproximei-me do esquife. Estanquei, cabisbaixo. Enxerguei artelhos lindos, coloridos, uma unha de cada cor. Fingi que rezava. Ninguém ali, além de Deus, sabia que eu era ateu. Comprovei que os pés multicores pertenciam a uma bela mulher vestida com um tubinho verde-oliva. Viva o Brasil! A não ser pelos joanetes, tinha um corpo magnético. Nunca senti tamanho patriotismo por alguém. Juntei coragem e disse “Meus pêsames”. Contou-me que era biscate, ou melhor, bisneta do falecido e que fazia programas. Era uma especialista naquilo. Trabalhava no departamento de informática e inteligência artificial de uma empresa que comercializava criptomoedas. Me sentia desinteligente, para não dizer, um asno. Eu não fazia ideia do que tudo aquilo significava. Provavelmente, alguma coisa relacionada à kryptonita. Pesquisaria no Google, mais tarde, depois que jogassem sobre o caquético cadáver do meu amigo, a famigerada pá de cal. Logo o Apolinário, que vivia dizendo que, se pudesse escolher, preferia ser cremado antes de morrer.
O sentimento de consternação aumentou quando alguém puxou, à capela, o Hino do Exército Brasileiro. Pensei em Bolsonaro. Senti raiva. Claramente comovida, a moça afundou o rosto no meu peito e se debulhou em lágrimas. Nada mal. Enquanto afagava as madeixas daquela estranha de corpo escultural, com quem pretendia fazer sexo o mais rápido possível, comentei “Aguente firme, querida, é um mundo muito louco”.
Esta frase ficou imortalizada pelo escritor Charles Bukowski, o Velho Safado, e se encaixava perfeitamente ao contexto. A moça se esfregou em mim feito uma gata. Já parecíamos namorados. Aproveitei o ensejo para lacrar a urna, soprar a vela e colocar números finais a mais uma história.