“A vida muda rapidamente. A vida muda em um instante. Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina.” O trecho inicial de “O Ano do Pensamento Mágico”, livro da escritora americana Joan Didion, soa familiar num momento em que a morte virou vizinha. A imprevisibilidade desse instante temido passou a ser um pranto universal compreendido por muitos. O título vibrante esconde seu conteúdo trágico. O ano do pensamento mágico, na verdade, é um híbrido de memória e autobiografia sobre o ano de 2004. Às vésperas do Ano Novo, no dia 30 de dezembro de 2003, Joan presenciou a morte do marido, o também escritor John Dunne, após o jantar, no instante em que ela temperava uma salada.
Esse instante aparentemente banal em que um homem pede mais uma dose de uísque — que seria a sua última — e morre em seguida, estabelece uma divisa na vida de Joan Didion que irradiou luz sobre um luto que foi vivenciado de forma duplamente devastadora. Após alguns meses da morte de John, a filha adotiva do casal, Quintana Roo, morreu após uma queda no aeroporto de Los Angeles que resultou num traumatismo craniano. “Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina.”
Joan repete esse trecho em diversos momentos do livro, como se estivesse montando um retrato da sua mente que ainda não entendeu o absurdo da situação. Um jantar, um tombo no aeroporto, o último uísque. Os instantes cancelaram a normalidade da vida, suspenderam qualquer possibilidade de resposta e viraram sujeitos de uma tragédia particular.
É difícil decifrar os escombros quando nossas referências não estão mais de pé. No caso de Joan, a morte do marido não apenas representou o fim de um casamento feliz. Representou, também, o fim de uma época prodigiosa vivida a dois em que “ninguém pensava duas vezes antes de voar mais de mil quilômetros apenas para jantar”. À exceção dos primeiros cinco meses de casamento, o casal compartilhou a rotina doméstica durante quatro décadas, tendo em vista que ambos trabalhavam em casa. Situação que era vista como mau agouro para a mãe de Joan: “Na riqueza e na doença, mas nunca no almoço”.
Durante o relato, Joan revela a desorientação que o luto inaugurou em sua vida profissional: “Escrevi um artigo pela primeira vez depois da morte de John. Era o primeiro que escrevia desde 1963 cujo rascunho ele não ia ler para me dizer o que havia de errado, o que estava faltando, como elevar o tom em uma parte e baixar em outra. Quando revisei o texto para publicação fiquei perplexa e perturbada com a quantidade de erros: erros simples de transcrição, nomes e datas incorretos. Disse a mim mesma que aquilo era mais uma evidência dos déficits cognitivos que vinham com o sofrimento pela perda, mas continuei inquieta. Será que um dia voltaria a confiar em mim novamente?”
Como recuperar o domínio? Como não sucumbir? Como não caminhar para a outra morte, que é autopiedade? Didion usou a escrita para ordenar o seu luto e criou uma narrativa brutal sobre o processo. Era uma experiência recente e que, portanto, ainda pulsava.
O sonho, esse reino não habitado, também foi tocado pelo luto. “Eu costumava contar meus sonhos para John, não para tentar compreendê-los, mas para me livrar deles, limpando a minha cabeça para poder enfrentar o dia. Depois que ele morreu, eu parei de sonhar.”
Em 2020, quando a pandemia começou, a universalidade do luto se impôs como uma nuvem densa que estaciona sobre os continentes. Mas, se nas linhas gerais, o luto é universal, ele se endereça de diversas maneiras quando mesclado às miudezas da vida pessoal. Joan reluta com a palavra autopiedade, pronunciá-la é criminoso. Ela embarca num movimento pendular: ora com consciência inabalável perante sua tragédia, ora curvando-se à potência esmagadora do luto.
Ela, inclusive, confessa com arrependimento sobre o sentimento que teve ao ler, aos 22 anos, o livro que a viúva do poeta Dylan Thomas escreveu após a morte do marido. “Me lembro de menosprezar, até mesmo de desprezar sua autopiedade, lamentos e seu ato de remoer o sofrimento.”
E finaliza: “O tempo é a escola na qual aprendemos”. Ser viúva, muitas vezes, representa uma viuvez temporária de si. Entre as enlutadas da literatura, a postura de Joan Didion frente a seu infortúnio remete a figura de Fermina Daza, a musa coroada de “O Amor nos Tempos do Cólera”. A personagem de Gabriel García Márquez não se curva à intransigência da morte e repele qualquer gesto que parece alardear sua dor.
Joan examina cada segundo do dia da morte do marido para tentar encontrar o que poderia ser evitado. Essa busca por sentido racional da morte leva a escritora a pesquisar obsessivamente sobre anomalias no coração e descobertas recentes da medicina. Em uma conversa com o cardiologista de seu ex-marido, ela descobre que a causa da morte foi uma obstrução na artéria descendente anterior esquerda, anomalia que o médico chama de ‘fazedora de viúvas’. No fim do relato a escritora demonstra fazer as pazes com o luto ao entender que há leis orquestradas pela impotência e que devemos obedecê-las. Na morte e na vida.