Tudo na vida é foco, não? Sim, e por isso vamos fixando posições nesta nossa triste existência, fingindo que não somos náufragos sobre balsas de bambu (com um tigre na outra ponta do barco ou da balsa, como no filme). Foco é um tipo de certeza; navegar, afinal, com ou sem tigres, é preciso, e viver não é preciso — não é preciso e dói, de uma dor doída, aqui no lado esquerdo do peito. Ter foco, vale dizer, deveria minorar algumas dores, como ensinam os manuais, os tratados e a literatura técnica acerca de anginas e tristezas. Deveria. Pois eu, aqui confesso, já tentei ser focado: juro e asseguro. Afianço que sim. Faço listas, por exemplo, mas sou mutável, mutante, cambiante, dispersivo. Querem ver?
Direito: constitucional e administrativo (assim mesmo, com iniciais minúsculas, para não dar ares de importância a coisas técnicas).
Filmes: com explosivos e Sergio Leone, ou Sergio Leone quando explosivo. Ou ainda, pela ordem: “O Segredo dos Seus Olhos”, “O Segredo dos Seus Olhos”, “O Segredo dos Seus Olhos”. Em quarto lugar, “O Segredo dos Seus Olhos”; em quinto, “A Grande Beleza”.
Melhor cantor brasileiro: Frank Sinatra, no Maracanã, em 1980.
Poetas brasileiros: Drummond às segundas, João Cabral às terças, Cecília Meireles às quartas, Vinicius (o da primeira fase) às quintas — e descanso de sexta a domingo.
Prosa: depende de haver sol ou chuva. Pode ser Thomas Bernhard ou Montaigne; talvez o Padre Antônio Vieira. Philip Roth? Também.
Sonetos de amor: Camões, Elizabeth Barrett Browning e Shakespeare.
Mojito: La Bodeguita. Daiquiri: El Floridita.
Espetáculos da natureza não explicados: Machado de Assis e Nelson Rodrigues, duas supernovas.
Música: Bach ou o meu amigo e conterrâneo Leonardo, a depender do álcool.
Aos domingos: “De l’audace, encore de l’audace, toujours de l’audace!”.
Às segundas: “I would prefer not to”.
No resto da semana: “O horror, o horror!”. Ou: “Mistah Kurtz — he dead”.
Um sonho: “Eu tive uma fazenda na África, aos pés dos montes Ngong”.
Frase aguardando o momento de ser dita: “Prendam os suspeitos de sempre”.
Palavra ou expressão em português: “lues”. Em espanhol, “muchedumbre”; em inglês, “goosebumps” e “heebie-jeebies”. Não nos esqueçamos: “Le jour de gloirie est arrivé”, “Wie heissen Sie?”, “Pa amb tomàquet”.
Um rio: o Tapajós. E o da minha aldeia.
Alter ego: Churchill. Talvez Lincoln. Ou Pedro Malasartes.
Superego: solúvel.
Alma mater: as vielas do Setor Sul.
Cidades: Rio, Veneza, Boston e Palmeiras de Goiás.
Atriz de cinema clássico: Ava Gardner. Não, não: Lauren Bacall em “Uma Aventura na Martinica”.
Amigos: todos os leais (existem de outro tipo?).
Esportes em geral: qualquer Super Bowl. Ou Senna na chuva.
Futebol: “Eu sou Goiás Esporte Clube,/ Eu sou Goiás, eu sou Goiás e vou gritar/ Até o peito me doer,/ Até perder a voz,/ Eu sou Goiás”.
Ária: “Casta Diva”.
Coro: “Va, Pensiero”.
Charutos: Cohibas são supervalorizados; Partagas, portanto.
Série: “Breaking Bad” e a sua quase variação recente, “Your Honor”.
Ternos: sob medida.
Gênio da raça: Martinho da Vila.
Uma canção que eu gostaria de ter composto: “Respeita Januário”.
Pratos: feijoada e cassoulet, parentes em primeiro grau, isso quando não houver pamonha, gueroba ou pequi.
Um desgosto: não ter morrido na praia de Omaha em 6 de junho de 1944.
Livraria: todas as de Lisboa.
Método de vida: eine grosse Konfusion.
Animal: bife. E o Frank Underwood, o felino que coloniza o meu apartamento.
Incipit de livro: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento…”. Opa, minto: “Lolita, luz da minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta”.
Arrependimentos: todos, tantos, sempre, de novo, again and again, per saecula saeculorum.
Mas poderia ser:
Direito: Frank Sinatra.
Filmes: sem explosivos, a não ser quando for James Bond.
Melhor cantor brasileiro: Charles Aznavour, em Goiânia e Brasília, há cerca de uma década.
Poetas brasileiros: Gregório de Matos, todos os dias, e Gonçalves Dias, quando me sinto épico.
Prosa: faça chuva ou sol, Graciliano Ramos. Eventualmente, Virginia Woolf. Iris Murdoch? Também, também, no mar, no mar.
Sonetos: Claudio Manoel da Costa.
Mojito: troco por um negroni. Daiquiri: o que eu faço.
Espetáculo da natureza não explicado: Castro Alves.
Música: Mozart ou o meu amigo e conterrâneo Fernando Perillo Perfil I.
Aos domingos: “Ai, que preguiça!”, macunaimamente.
Às segundas: “Mó num pá tropi/ Abençoá por Dê”.
No resto da semana: “Dr. Livingstone, I presume?”.
Um sonho: “I have a dream!”.
Frase aguardando o momento de ser dita: “Oyez, oyez, oyez!”.
Palavra ou expressão em português: “pênfigo foliáceo”. Em espanhol, “reloj”; em inglês, “innuendo”. Não nos esqueçamos, “L’étendard sanglant est levé”.
Um rio: o da minha aldeia. Ou o Tejo. Ou o Tajo.
Alter ego: Lord Salisbury. Talvez Golda Meir, se eu fosse uma avozinha poderosa. Ou Mazzaropi.
Superego: inexistente.
Alma mater: os fundos das salas de aula.
Cidades: Buenos Aires, Savannah, Toledo e Pirenópolis. Pelo nome, Afogados da Ingazeira.
Atriz de cinema clássico: Rita Hayworth. Não, não: Grace Kelly em “High Noon”.
Amigos: todos os malucos (existem de outro tipo?).
Esportes em geral: amarrar cadarços.
Futebol: Palmeiras de Goiás Esporte Clube.
Ária: “L’amour est un oiseau rebelle”.
Coro: “Marcha dos Toureiros”.
Charutos: aqueles ainda não fumados.
Série: “The ‘70s Show”.
Ternos: nunca.
Gênio da raça: Cartola
Uma canção que eu gostaria de ter composto: “Moça bonita, o seu corpo cheira/ Ao botão de laranjeira,/ Eu também não sei se é,/ Imagine o desatino, é um cheiro de café,/ Ou é só cheiro feminino,/ Ou é só cheiro de mulher”. E ainda: “Dont’t Let me Be Misunderstood”.
Pratos: acarajé, sobretudo quando não houver pato no tucupi. Mas, à Carmen Miranda, também sou do ensopadinho de camarão com chuchu.
Um desgosto: não ter ouvido o discurso de Gettysburg ao vivo.
Livraria: todas as do mundo; em especial, a “Acqua Alta”.
Método de vida: cabelo ao vento, gente jovem reunida.
Talvez: Was tun, wenn’s brennt?
Animal: Edmundo, do Vasco.
Incipit de livro: “It was the best of times, it was the worst of times, it was the age of wisdom, it was the age of foolishness, it was the epoch of belief, it was the epoch of incredulity, it was the season of Light, it was the season of Darkness, it was the spring of hope, it was the winter of despair, we had everything before us, we had nothing before us, we were all going direct to Heaven, we were all going direct the other way”.
Arrependimentos: nel nezzo del cammin di nostra vita, sempre os há.
Ou…
Bem, vocês pegaram a ideia da coisa. Foco, foco, foco. Concentração. Rumo, destino, certeza, definição, limitação, essência, resolução. A gema, a íris, o âmago. O busílis. E é assim — eis agora, somente agora, o meu tema — que também se faz uma coleção de livros: quando não se é um José Mindlin, culto, onívoro literário e empresário de sucesso, é preciso concentrar os interesses: âmago, essência, limitação, busílis. Coisa difícil, muito difícil.
Teoricamente, eu — que estou no mercado há décadas — colecionaria primeiras edições de autores modernistas brasileiros, livros com dedicatórias do autor e relatos de viajantes estrangeiros que vieram ao Brasil. Ocorre que qualquer colecionador com mais expertise se riria de mim: ninguém constrói uma coleção minimamente séria com um campo tão amplo de opções. Foco? Nenhum.
Verdade, ai de mim, verdade. Mas não sou sério, outro ai de mim. Pior: leio, não apenas entesouro, o que compro ou herdo. E então, entre uma primeira edição de “O Romanceiro da Inconfidência” e algum livro da Editora José Olympio, lá dos anos 30 e com aquelas maravilhosas capas do Santa Rosa, surge uma edição portuguesa de “Gil Braz de Santilhana”. “Gil Braz” (“Blas”, em francês e espanhol), dizem, teria sido o último romance picaresco. Talvez, mas isso não me emociona e não sinto goosebumps: fujo, porém, do… foco (por ser um tanto desfocado, já viram); contudo (e nunca contido), eu o faço com motivação digna: as ilustrações — gosto de figurinhas, mapas, mosaicos, estampas, ornamentações e rabiscos de qualquer natureza.
Isso me vem, creio, dos livros que eu lia, ou folheava, quando menino, todos coloridíssimos. Umas fábulas com ilustrações que me enchiam os olhos e os dias, “Abu Kir e Abu Sir”, por exemplo, ou uma edição do “Quixote” com desenhos de Gustave Doré. Talvez toda uma coleção do Júlio Verne com aquelas ilustrações em que havia um trecho qualquer do texto as explicando, lembram-se? De qualquer modo, é vício antigo e renitente: todo o Monteiro Lobato, o Júlio Verne completo, parte do Alexandre Dumas e o “Winnetou” foram lidos por mim, quase em estado febril, em exemplares ricamente completados com imagens.
É fato, qualquer foco é — ou deveria ser — tudo na vida. No mínimo, meta a ser perseguida. Desviando-me, assim, desse fugidio foco — nasci para me apartar das trilhas já batidas, dizem —, aí na fotografia está o “Gil Braz”, em edição portuguesa de 1885, com umas ilustrações que me enchem os olhos, me enchem de orgulho, me enchem as estantes, me enchem os neurônios e me esvaziam as dores, os bolsos, a futura segurança e, contraditoriamente, as sinapses. “Chega dói”, como dizemos em chão goiano.
Foco, Marcelo, foco. Até para poder me desfocar, foco.
Crédito editorial: David Fadul l Shutterstock