Aglomerações permitidas somente com flores, insetos e passarinhos

Aglomerações permitidas somente com flores, insetos e passarinhos

Quando botei a cara chorosa para fora, a escorregar pelo aconchegante e anatômico tobogã do ventre materno, o Doutor Jivago bem que me alertou: “Tens certeza, meu pequeno? Se saíres daí, não tem mais volta”. Obviamente que eu teimei, que eu saí, ou não estaria, agora, a lhes escrever. Caí nos braços do mundo para ser embalado por histórias de alegria e de sofrimento.

Criei-me numa casa de subúrbio. Lembro-me, até hoje, do cheiro de asfalto quente quando pavimentaram a ruazinha de terra, onde jogávamos, descalços, o cu-de-boi. Morei no mesmo endereço por quase uma vida inteira, até contrair matrimônio, que nem era assim uma doença pra gente usar esse tipo de verbo transitivo direto, mas, ao contrário, era só o velho amor intransigente, indireto, a contagiar um casal desavisado. Nunca fui afeito ao pragmatismo dos condomínios habitacionais verticais. Durante um curto período de tempo, experimentei residir num apartamento. Não deu certo. O prédio me dava tédio. Além de tudo, sofria de rimas pobres, de acrofobia e de severa aversão às infames reuniões com os condôminos. Tinha — e ainda tenho — dificuldades em lidar com determinados tipos de pessoas.

Realmente, foi muita sorte minha ter tido o privilégio de me alimentar bem, de vestir roupas limpas e de estudar. Tornei-me um adulto relativamente estável, do ponto de vista psicológico, trabalhei um bocado e consegui juntar grana suficiente para comprar um lote urbano, onde edifiquei a casa em que, hoje, moro. Na fase de projetos, idealizei uma casa térrea, tipo casa de campo, com fogão à lenha, pilastras e janelas de madeira, badulaques dependurados e outras excentricidades do gênero. “Estilo colonial”, era como se dizia. Eu tinha saído da roça, mas, a roça não tinha saído de mim, se é que me entendem. Felizmente, para o bem de todos, principalmente, da natureza vegetal, fui convencido pelo meu primo arquiteto a aceitar um projeto mais clean, mais moderno, menos besta, menos danoso ao meio ambiente.

Sinto-me aliviado sempre me impedem de cometer uma besteira. A casa ficou bem legal, arejada, com luz natural em tudo quanto é cômodo e, melhor de tudo, sem excesso de seres humanos nas adjacências. Reservamos um pedaço do lote para cultivar um jardim e plantar um pomar com árvores de pequeno porte. Raízes nervosas poderiam romper os canos. Não queríamos comprar briga com as plantas, certo? O quintal. Ah… O quintal. Penso que seja o melhor canto da casa. Melhor até do que a suíte do casal, onde dou show, uma vez por semana — geralmente, aos sábados, se o tempo estiver firme. Chistes autodepreciativos à parte, posso garantir que o jardim nunca esteve tão florido e bem frequentado. Por causa do distanciamento social compulsório, passo mais tempo em casa. Sento-me na varanda. Tomo banhos de sol. Penso nos vivos e nos mortos que amo. Sinto raiva dos Bolsonaro. Aprecio os arbustos adornados com florezinhas vermelhas, amarelas, lilases.

Uma das inúmeras vantagens de se residir numa casa é não ter que levar o cachorro para fazer coco nas pessoas, ou melhor, levar o cãozinho para aliviar os intestinos na calçada, nem dividir o elevador com gente inconveniente. Além do mais, pode-se andar pelado pela casa inteira, com relativa privacidade, sem ser acusado de propaganda enganosa, de ataque ineficiente ao pudor ou de apologia à feiura. Bronzeio-me de cuecas, com relativo frescor na região testicular, uma belezura. O próximo estágio evolutivo será expor a genitália ao poder penetrante dos raios ultravioleta. Há que se desenvolver a sagacidade de um índio para evitar queimaduras tão melindrosas. Ponho música boa para tocar. Reaprendo como respirar corretamente: inspirar, expirar, inspirar, expirar. Tento meditar, mas, sou insuportável para tolerar tamanho ensimesmamento. Presto atenção aos seres vivos do jardim. Não me recordo de tê-lo visto com tantos insetos e passarinhos. Será que estou a padecer de frescura, de andropausa ou de excesso de sensibilidade por causa da pandemia avassaladora que empesteia o planeta?

Enquanto o sol providencia a conversão da vitamina D no meu organismo, observo o revezamento organizado de abelhas de várias espécies, de marimbondos, de borboletas multicores e de colibris levíssimos, todos eles na elegante captura de pólen e de néctar. Minha gata avisa para eu tomar cuidado com os insetos. “Proteja as partes. Picada de marimbondo-cavalo é um coice na alma.”

As mulheres são seres extremamente sensatos. A glande sempre foi mais sensível do que o bolso. O cenário particular é de paz, de contentamento, de simplicidade e de bom humor, por causa da algazarra coordenada pelos bichinhos do jardim. Sinto-me, mais uma vez, afortunado. De repente, baixa aquele familiar complexo de inferioridade. Cacau, a cadelinha, percebe a queda abrupta de energia vital e me lambe no pé. Alheios aos sofrimentos da humanidade, que enfrenta uma dificílima, formidável guerra microbiológica pela sobrevivência no planeta, aves e insetos dão mais vida à casa, mais ternura para dirimir o sofrível ambiente de caos sanitário.

E pensar que eu tentava matar passarinhos, quando era um moleque. Ainda bem que fui um péssimo caçador. Nunca acertei nenhum. Hoje, quem leva pedradas sou eu. Quem sabe, não seja exatamente isso que a humanidade esteja precisando, com fins de evolução: tomar pedradas da natureza para ver se aprende a voar, ainda que em pensamento.   

Eberth Vêncio

É escritor e médico.