Mamãe anda mais feliz do que pinto no lixo. Tomou a primeira dose da vacina contra o Covid-19. Faz, exatamente, um ano que não põe os pés na rua, nem para colocar o lixo lá fora. Aos 83 anos, mora num sobrado antiquado, aconchegante, a casa em que fui criado com os meus três irmãos. Gente velha tem velhos hábitos. Enquanto coa o café no coador de pano encardido, démodé, ela comemora o fato de ter, enfim, recebido a primeira dose do imunizante chinês. Não sentiu nenhum efeito colateral, senão a esperança a crescer dentro do peito. Mamãe é otimista como uma semente que brota na terra molhada pela chuva.
Animadíssima, a cantarolar Nelson Gonçalves, ela conta que a maioria das amigas do Clube da Melhor Idade também já se vacinou. Estão pensando, inclusive, em organizar uma festa, para breve, assim que a dor dos sobreviventes permitir, tão logo a crise sanitária arrefeça e a mortandade deixe de nos escandalizar. No momento, a principal meta de Dona Geralda é alcançar, em idade e lucidez, a longeva tia Antonieta, que vai completar formidáveis 105 anos de idade na próxima semana. Merecia festança, ela diz. Mamãe é uma mulher festeira. Por que não a puxei nesse quesito?
Enquanto tomamos café com biscoitinhos de nata, ela liga a TV e sintoniza num dos infernais canais religiosos disponíveis na grade de programação. É hora de missa das 6. Só para irritá-la, pergunto se a missa será ministrada pelo padre mafioso que foi denunciado pelos promotores de justiça. Mamãe fita-me com estupefação, desaprova a brincadeira e comenta que assiste às missas, independentemente de quem seja o celebrante, embora, sofra de arrepios pelo padre galã, um grandalhão que se veste de branco e usa chapéu de aba larga, tipo criador de nelore. Tenho ciúmes de mamãe com esse sujeito. Ela garante que seu compromisso é com o Divino Pai Eterno. Aliás, o pároco que foi acusado de bandalheiras já foi afastado pela diocese. Quem reza as missas na basílica milionária, atualmente, é um padre negro, simpático e humilde que só vendo. Nunca tinha visto um padre afrodescendente rezando missas por essas bandas. Será que a igreja é racista?
Mamãe segura o terço que trouxe de Aparecida do Norte, antes do advento da pandemia. Ela mal pisca os olhos. Vou fazendo anotações que, espero, renderão um novo texto. Termina a celebração e ainda estou ali, aporrinhando a progenitora. Um boletim urgente surge na tela da TV. As cenas mostram uma enorme fila de idosos que aguardam para ser vacinados. Nota-se uma maioria acachapante de senhoras. Por serem mais ignorantes e mais insolentes, os homens acabam morrendo primeiro. Morte que segue. Deus sabe o que faz. O repórter entrevista uma senhorinha serelepe, comunicativa, magérrima e cativante, como a minha mãe. Gerê salta da cadeira, desafiando o risco gravitacional da osteoporose. Aponta o fura-bolo varicoso para a TV. Vibra como se aquilo fosse um gol do Flamengo. Era Júlia, uma das suas melhores amigas do clube de senhoras.
Hora de vazar. Já tinha atazanado demais aquela adorável criatura. Pergunto se ela precisa de suprimentos, de remédios, de serviçais, de dinheiro em espécie. Mamãe não confia nos cartões de crédito. Não a culpo por isso. Também não confio em padres. Ela responde que não, que a despensa está bem abastecida de alimentos e de produtos de limpeza. Por fim, comento que o café estava uma delícia, que ela deveria ser menos radical, reconsiderar a sua decisão de não sair de casa, em hipótese alguma, a não ser, por doença. Eu argumento, quem sabe, podíamos caminhar juntos até a Praça do Cruzeiro, em ritmo de melhor idade, para apreciar os novos canteiros floridos, ouvir passarinho, voltar no tempo, só pra variar.
Ela diz que só sai de casa depois da segunda dose da vacina. Após tanto tempo enclausurada, pergunto se não se sente só, se não padece de tristeza, se não tem vontade de dar umas voltinhas de carro comigo, com as janelas abertas, ambos a usarmos máscaras, álcool em gel e apetrechos do gênero. Só depois da segunda dose, ela insiste. Garante que não se sente triste. No máximo, uma suave nostalgia, tipo uma cãibra que vem e que vai. Por hora, a fim de não definhar o corpo e a mente, exercita-se a faxinar a casa, um cômodo por dia, no ritmo que o seu corpo octogenário suporta. Cozinha para si mesma. Toma medicamentos e banhos diários de sol. Cultiva uma pequena horta. Lê bons livros, “Inclusive, os do padre Fábio”, ressalta. Decora poemas de Cora Coralina, tão velha quanto ela, mulheres do século passado. Escreve memórias que, um dia, haverá de as publicar. Por fim, baila com seu parceiro imaginário, um belíssimo tango, “Um pensamento triste que se pode dançar”, conforme definiu o poeta argentino Enrique Discépolo.
Dirijo pelas ruas vazias. Não há muito mais que se possa dizer. O cenário é de desolação e de medo. Das janelas, homens e mulheres com semblantes graves balançam lenços de lágrimas evaporadas. Muitas mágoas foram choradas no último ano. As crianças, não. As crianças apenas brincam, na maior parte do tempo. Elas pensam que a vida será sempre uma grande brincadeira. Não são escoladas na tristeza e na melancolia, como os adultos. Não se apegam aos exercícios de futurologia, porque não esperam nada mais da vida do que arrancar os sapatos, brincar com os amigos e comer docinhos. Amarga-se em demasia com o esvair do tempo entre os dedos. Eu me sinto um jiló.
Melhor seria tratar o perigo com a devida infantilidade. Não resta um só lugar no planeta onde se possa esconder do inimigo invisível. Ressentidos, alguns comentam que o vírus pode ter sido sabotagem chinesa, um ultra-micróbio criado em laboratório mongol e disseminado pelo mundo, com apoio logístico do cuspe e da maldade. Não creio. A minha boca seca só em pensar do que seja capaz um ser humano, em matéria de sabotar ou de difamar sem embasamento. O inumano assusta-me muito menos. Morros que a chuva derrete e que soterram aldeias. Vulcões que sangram lavas candentes sobre os homens. Tremores que rebolam os quadris dos prédios. Tsunamis que lavam a alma da gente, só que ela nunca se limpa.