A mitologia grega nos remete ao conceito de mito como uma narrativa de conquistas e glórias sobre deuses ou heróis. Uma fábula fantástica mitológica, assim, envolveria a alegoria de um personagem de invejáveis virtudes, que talharia seu nome na história através de grandes feitos realizados em vida. Em 2018, o povo brasileiro encarnou o conceito de mito em uma figura pública, eleita sob a roupagem de salvador de uma nação perdida em tortuosos descaminhos. Nascia, ali, o principal protagonista de um enredo nada convencional, sobre um país que acabaria relegado a pária internacional. E com centenas de milhares de vidas interrompidas por seu apego a um negacionismo cego.
2020 foi um “não ano”. Na guerra contra a pandemia, as desventuras e tragédias foram vitoriosas. Enquanto o planeta assistia atônito à escalada de um vírus mortal, com o alerta ligado para a tomada de providências imediatas, drásticas e impopulares, o Brasil serenamente via seu presidente instaurando uma república caótica, na contramão da história. O resultado não poderia ser outro: quase 300 mil brasileiros mortos em um ano — e esse número não para de crescer. A conta do desprezo pela ciência chegou de mãos dadas com o horror. Algo que, infelizmente, parece longe de acabar.
A cronologia é de escárnio. O governo federal desdenhou da pandemia como se ela não passasse de histeria criada pela mídia e pelos “globalistas”. Essa narrativa delirante foi não apenas abraçada, mas incentivada e propagada em numerosos discursos feitos por um líder aparentemente pouco preocupado com a catástrofe progressiva. A sua serenidade ao confrontar os ditames da ciência, atrelada aos seus esforços em desqualificar o isolamento social e as máscaras, são fatores que, por si sós, seriam suficientes para questionar sua legitimidade no cargo. Porém, no Brasil, é preciso mais do que isso para a remoção de um governante eleito. Afinal, um impeachment tumultuaria a nação. Milhares de mortes evitáveis, não.
Segundo a presidencial voz da razão, o resultado final da pandemia não chegaria a 800 óbitos — muito abaixo dos números do H1N1. O pânico seria uma maneira covarde de encarar o vírus letal. Afinal, quem está na chuva tem mais é que se molhar. Num país de maricas, onde o choro e o mimimi são intermináveis, nada mais justo do que mitificar um ser humano que enaltece a ditadura e se preocupa em aumentar o número de armas, mas não se compadece com os milhares de mortos a cada dia. Sem vacinas, com expectativas aterrorizantes e o colapso na saúde, o Brasil colhe os frutos da criação de seu néscio herói — um Policarpo sem a menor erudição. Essa narrativa tão absurda certamente será encarada com incredulidade pelas gerações futuras. É a mitologia à brasileira, construída com sangue, escárnio e deboche. Só nos resta o luto.
Este texto seria melhor lido ao som de “Le Chant des Partisans”.