Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1910-1989) estava internado, devastado pelo mal de Parkinson, e sua médica entrou no quarto e disse: “Grande mestre, eu vim aqui só para lhe ver!”. Na cama, o filho das Alagoas se retorce e sussurra: “Vê-lo, vêêê-lo”. A história é contada por Beto Sales no delicioso prefácio do excelente livro Por Trás das Palavras (Máquina de Livros, 192 páginas), do jornalista Cezar Motta, um pesquisador de primeira linha. O subtítulo do livro é quase do tamanho das tarefas de Hércules: “As intrigas e disputas que marcaram a criação do Dicionário Aurélio, o maior fenômeno do mercado editorial brasileiro”.
Na página 28, Cezar Motta conta que Aurélio prestava atenção ao que dizia o interlocutor, o que era “encantandor” (com um “n” a mais). O jornalista diz que o guerrilheiro Carlos Marighella dirigia a Aliança Libertadora Nacional (página 121), o que não é vero. Seu grupo revolucionário era a Ação Libertadora Nacional. Erico Verissimo não apreciava que escrevessem “Érico Veríssimo” — com dois graciosos acentos agudos. O pesquisador mantém Verissimo, mas acentua Erico (na página 138, publica o nome corretamente). São pecadilhos, quer dizer, não têm a mínima importância. O forte do livro é a parte que conta a história da feitura do “Dicionário Aurélio” ou simplesmente “Aurélio” ou “Aurelião”. O relato da interação e da guerra entre Aurélio e Joaquim Campelo é extraordinário. Há momentos em que se pensa que são Mozart e Salieri — com a ressalta de que tanto um quanto o outro podem ser, dependendo da leitura, Salieri ou Mozart. Por sinal, por mais que Cezar Motta seja objetivo, sua história é contada muito mais a partir do ponto de vista de Campelo e de seus aliados.
Ao trocar Alagoas pelo Rio de Janeiro, Aurélio pretendia se tornar escritor. Publicou em 1942 a coletânea de contos “Dois Mundos”, cujas histórias apontadas como mais importantes são “O chapéu de meu pai” e “O retrato de minha avó”. Mas seu destino era “pecar” como dicionarista.
Octalles Marcondes, sócio de Monteiro Lobato, sugeriu, em 1929, que o médico alagoano Hildebrando de Lima, irmão do poeta Jorge de Lima, pesquisasse para escrever um dicionário. Em 1938, saiu o “Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa”, com 60 mil verbetes. A Editora Civilização Brasileira não colocou o nome dos autores, Hildebrando de Lima e Gustavo Barroso (o integralista). O poeta Manuel Bandeira, além da revisão, atualizou a obra.
Manuel Bandeira convidou Aurélio para elaborar os “brasileirismos” das novas edições do “Pequeno Dicionário”. “Dedicava-se a buscar novas palavras, neologismos e abonações em escritores consagrados — e, a partir de 1951, como principal revisor, cuidou de fazer correções e atualizações, tarefa que conduziu até 1962.” O tradutor e crítico literário judeu húngaro Paulo Rónai passou a ajudá-lo.
Aurélio queria mais. Com uma língua consolidada, falada por mais pessoas do que na ex-metrópole, Portugal, o Brasil estava à espera de um dicionário mais amplo e maduro. Seria uma maneira de “captar” como os brasileiros reinventaram uma língua que herdaram da pátria de Camões, Eça de Queiroz e Fernando Pessoa. Dando aulas no México, Aurélio pôs-se a pensar que o país precisava de uma obra encorpada como o “Webster”. Ele queria incorporar “a fala do povo, o uso cotidiano do idioma, suas inovações, a dinâmica e a imensa variedade regional”.
Ao conhecer Joaquim Campelo Marques, do qual foi professor na Escola Brasileira de Administração Pública, Aurélio parece ter encontrado uma pilastra segura para seus futuros projetos. Formado em Jornalismo, Campelo contribuiu para a atualização do “Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa”, com pesquisas e revisão, sem cobrar um centavo de Aurélio. Era o ajudante — eu ia escrevendo “escravo”, mas lembrei de possíveis processos judiciais — “ideal”.
De cara, Campelo percebeu que Aurélio era “desorganizado” e só acordava por volta de 10 ou 11 horas. “Era um autodidata nas áreas de lexicografia, etimologia e linguística. Mas tinha um talento natural muito grande para definições, para a gramática, era um formulador nato”, assinala Cezar Motta. A centelha de gênio, daqueles dotados de inteligência, digamos, natural deve ter atraído Campelo.
Chatô, Abrahão Koogan e Aurélio
A Editora José Olympio decidiu lançar um “Vocabulário Ortográfico”, baseado na reforma ortográfica dos anos 40. Manuel da Cunha Pereira havia redigido o material e, em seguida, indicado pelo escritor José J. Veiga — goiano de Corumbá —, Aurélio foi convocado para ampliá-lo. Campelo o ajudou no trabalho. Manuel da Cunha Pereira escreveu “Enriqueça Seu Vocabulário” e Aurélio assinou como coautor.
Mas quando sairia o “Webster” ou o “Oxford” patropi? Segundo Cezar Motta, “no fim dos anos 1950, todos os principais editores do país já acreditavam que seria Aurélio o autor do grande dicionário da Língua Portuguesa que o mercado editorial tanto esperava”.
Dois amigos de Aurélio, Marques Rebelo e Herberto Sales, convidaram Aurélio para redigir um dicionário da Língua Portuguesa em fascículos para a revista “O Cruzeiro”, de Assis Chateaubriand, o Cidadão Kane dos trópicos. Como a revista não bancou a estrutura prometida, Aurélio, que só contava com o apoio de Campelo, que nada recebia, não escreveu o dicionário. Por outro lado, ficou patente, para os editores, que Aurélio era “desorganizado” e não tinha “plano de trabalho”. Era perfeccionista, mas o trabalho não saía do lugar.
Em 1961, Aurélio entrou para a Academia Brasileira de Letras (ABL). No discurso de posse, chegou a citar a palavra “importúnio”, que, mais tarde, optou por não dicionarizar.
O “Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa”, assinado somente por Aurélio a partir de 1964, continuava vendendo. Mas, alegando que não cumpria prazos, o editor da Civilização Brasileira, Enio Silveira, rompeu com Aurélio.
Apesar de saber de sua má fama quanto aos prazos, Abrahão Koogan, da Editora Delta, convocou Aurélio para produzir um dicionário, em fascículos, da Língua Portuguesa. Na verdade, foi convencido por Campelo, que na época era copidesque do “Jornal do Brasil” e trabalhava na agência Standard Propaganda como redator.
Aurélio teria 4% das vendas do dicionário e durante sua confecção receberia o equivalente a 10 mil reais. Koogan alugou um andar de um edifício e duas filólogas, Elza Tavares e Margarida dos Anjos (filha de Cyro dos Anjos), foram contratadas. A mulher de Aurélio, Marina Baird Ferreira, se tornou assistente. Stella Rodrigo Octávio Moutinho também colaborou. Foram convocados como colaboradores Afonso Arinos de Melo Franco, Paulo Moreira da Silva (oceonógrafo), José Sarney e Ivan Cavalcanti Proença, entre outros.
“Um dicionário não é uma criação absoluta; é um plágio legítimo e em ordem alfabética”, afirma Cezar Motta. Por isso, Koogan disse a Aurélio e sua equipe: “Copiem o ‘Caldas Aulete’, que é meu”. A ideia era “canibalizar” tal dicionário mais o de Laudelino Freire, o de Francisco Fernandes e o de Antenor Nascentes. “Aurélio reconhecia que, para se elaborar um novo dicionário, era preciso tirar de outros o que poderia ser útil e vital. O Mestre, porém, era mais ambicioso; queria algo maior, original, definitivo. Queria inovar, introduzir palavras correntes, buscar abonações em escritores de prestígio”, anota Cezar Motta.
Campelo, empenhado em ajudar Aurélio, trabalhava dia e noite, porque também era funcionário do “Jornal do Brasil”. Pai da atriz Christiane Torloni, o editor Geraldo Matheus Torloni, assistiu “ao trabalho árduo, contínuo, silencioso e eficientíssimo do Campelo, recebendo colaboradores, distribuindo tarefas e organizando a equipe”.
O contrato previa que o dicionário estaria pronto em 18 meses. Porém, dois anos depois, com nada pronto, Koogan estrilou. Nenhum fascículo havia sido editado. O dicionário não saía por causa tanto do perfeccionismo de Aurélio quanto por sua desorganização. “As palavras são como borboletas, que passam pela gente e saem voando. É preciso capturá-las”, dizia o Mestre. O problema era que tais palavras não podiam voar para sempre — era preciso colocá-las no papel e agrupá-las em verbetes. Mas o quase-entomologista “via” as palavras, até anotava-as, ampliando o seu sentido, mas não as repassava para a edição.
Em 1969, com o dicionário atrasado, o prazo estourara em um ano, Koogan mandou seu auxiliar Paulo Geiger verificar o que estava acontecendo. Descobriu que Aurélio e sua equipe ainda estavam na leta “A”. Aurélio disse ao emissário, registra Cezar Motta, “que não poderia submeter seu trabalho intelectual à lógica industrial de Koogan”.
Campelo admitia que “a lentidão do trabalho era fruto da desorganização de Aurélio”, mas, ressalva, “também da complexidade da criação de um dicionário”. A equipe não estava paralisada na letra “A”. Na elaboração de um dicionário, afirma, “ninguém segue rigorosamente a ordem alfabética, o trabalho é feito de forma integral, de acordo com o surgimento de sinônimos, palavras, e conforme evolui a pesquisa por novos significados”.
Ante o atraso, Koogan desistiu do dicionário, demitiu toda a equipe, mas pagou todo mundo. Elegante, disse: “Foi apenas um mau negócio”. O empresário “gastou uma pequena fortuna, bem mais do que o equivalente ao preço de um bom apartamento na Zona Sul naqueles tempos”.
Pois bem: era hora de enfiar a viola no saco e desistir do dicionário e, sobretudo, de Aurélio. Mas Campelo era obcecado pela ideia de um grande dicionário que fosse a nova bíblia da Língua Portuguesa e, claro, pelo Mestre.
Dono de duas editoras, a Alhambra e a JCM Editores, Campelo decidiu que iria publicar o dicionário. Numa reunião, propôs a Aurélio a criação da empresa J. E. M. M. (J de Joaquim, E de Elza Tavares, M de Margarida dos Anjos e M de Marina Baird). Ele pretendia lançar um dicionário com cem mil verbetes.
Em São Paulo, depois de procurar vários amigos empresários, Campelo conseguiu recurso para bancar o dicionário, que deveria ficar pronto em um ano e deveria circular em 1970. A equipe foi encorpada pelo historiador Daniel Aarão Reis, pelo jornalista Paulo César Farah e pela professora Sônia Angel (torturada e assassinada pela ditadura civil-militar, em 1973). “Sob o comando de Campelo, eles preparavam os verbetes com base no ‘Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa’ e no ‘Caldas Aulete’.” Elza Tavares era responsável pela anotação das gírias. “Campelo cuidava de substantivos e adjetivos, mas atuava em todas as frentes. Daniel Aarão Reis” pesquisava “termos históricos e políticos”. Aurélio dava forma final aos verbetes e incluía “novos significados e abonações”.
Ah, no meio do caminho, além das brigas, o amor apareceu, brevemente, entre as palavras. Campelo era casado, mas apaixonou-se por Margarida dos Anjos. O amor foi eterno enquanto durou (dois anos).
Campelo pressionava, trabalhando como um condenado das galés, mas o perfeccionista Aurélio não “soltava” o dicionário. O Mestre era uma espécie de parteiro que não queria retirar o menino para entregá-lo à mãe, quer dizer, ao leitor.
“Em 1972, estourado o prazo de dois anos e meio, o dinheiro dos paulistas acabou. Bateu o desespero”, relata Cezar Motta. As editoras José Olympio e a Francisco Alves não aceitaram nem conversar com Campelo — o membro da equipe que saía a campo em busca de amparo. Todas diziam a mesma coisa: “Não confiavam na fidelidade do Mestre aos prazos e contratos”. Nem Juscelino Kubitschek, da financeira Denasa, quis ajudar.
O dicionário (ou Aurélio) havia se tornado o Capitão Ahab e Moby Dick estava à espreita. Incansável e obstinado, Campelo corria atrás de recursos. Na redação do “Jornal do Brasil”, diziam: “Você é um homem de coragem”. Aurélio dizia para o parceiro que não podia “trabalhar de graça”. Já Campelo “podia”.
Ao relatar a dificuldade para produzir e publicar o dicionário, Campelo ouviu do poeta Lêdo Ivo: “Aurélio era ‘aquilo ali mesmo [incapaz de se organizar], esse dicionário não vai sair’”. O chefe do copidesque do “Jornal do Brasil”, José Silveira, disse ao colega: “E então, bagual, em que pé está esse tal dicionário?”
José Silveira pediu para um funcionário do BNDE ajudar Campelo. Não deu certo. Procurada pelo jornalista, Regina Bilac Pinto, dona da Editora Forense, disse que não tinha estrutura para publicar um dicionário de grande envergadura, como o que estava sendo preparado, e o encaminhou para Carlos Lacerda, o proprietário da Editora Nova Fronteira. Campello continuava trabalhando. Aurélio continuava acordando tarde. “Durante o dia, era o Campelo quem coordenava a equipe, distribuía tarefas e tocava o trabalho”, disse o jornalista Marcos de Castro, do “Jornal do Brasil”.
A Nova Fronteira de Carlos Lacerda
Edson Braga pediu a Campelo que conversasse com seu tio Rubem Braga, que havia sido dono da Editora Sabiá. “Ué, dicionário tem direitos autorais? Para mim é novidade”, ironizou o cronista. Mesmo irritado com a desfaçatez do escritor, Campelo apreciou ouvir que Sérgio Lacerda, filho de Carlos Lacerda, havia criado uma empresa, a Datamec, especializada em computação de dados, que poderia ser essencial na edição do dicionário.
Na primeira conversa, Sérgio Lacerda não se entusiasmou. Mas marcou novo encontro, agora na Editora Nova Fronteira. Campelo foi recebido pelo advogado Roberto Hillcoat Riet Correia, que se entusiasmou com a ideia do dicionário. Cláudio Fornari, amigo de Campelo e de Riet, disse ao segundo: “Faça o dicionário, o mercado está favorável, vai dar certo”.
Fornari acompanhou a guerra para elaborar e publicar o dicionário. “O Aurélio foi o pai do dicionário, por sua reconhecida contribuição como grande filólogo. Mas era um homem abúlico em relação ao trabalho. Começou vários dicionários que nunca terminou. Campelo seria a mãe do dicionário. Foi ele quem o gestou, era a cabeça que tocava o projeto.” Esqueceu de dizer que não era, porém, o gênio criativo — o Mozart das palavras.
Carlos Lacerda não era entusiasta do dicionário. O editor e ex-governador da Guanabara disse a Riet: “Não faça isso, desista, você vai quebrar editora”. O executivo contestou-o: “Vai dar tudo certo, doutor Carlos, confie em mim, eu garanto”. O ex-demolidor de presidentes, cassado pela ditadura, aquiesceu. Presciente, João Condé, famoso pelos “Arquivos implacáveis”, teria convencido o editor “de que a Editora Nova Fronteira daria um passo histórico com a publicação do dicionário ‘Aurélio’”, sublinha Cezar Motta. Amigo de Riet, o jornalista Janio de Freitas, hoje na “Folha de S. Paulo”, deu o aval técnico.
Em abril de 1974, há 46 anos, a Nova Fronteira assinou um contato com Aurélio, Campelo, Elza Tavares, Margarida dos Anjos e Marina Baird. Aurélio deveria entregar o dicionário em seis meses. “Os royalties para os autores seriam de 10% das vendas, inicialmente, e 12%, a partir de novas tiragens. Aurélio teria 7% e os outros dividiriam os 3% restantes.”
Janio de Freitas disse a Riet e Campelo que a Gráfica Primor — de Koogan, aquele citado linhas atrás — tinha condições de imprimir o dicionário. “O próprio Janio de Freitas sugeriu o formato do dicionário, com as páginas diagramadas em três colunas, mas discordou da escolha do papel-bíblia das primeiras edições: ‘Dicionário é um livro de manuseio constante, e esse tipo de papel não resiste, acaba ficando dobrado e desgastado’”. Porém, se editado num papel mais grosso, seria quase impossível manusear, dado o tamanho.
Por ter acompanhado o processo de elaboração do dicionário, Janio de Freitas afirma que “Campelo é o responsável efetivo, factual, pela existência do ‘Dicionário Aurélio’. Aurélio não tinha espírito de organização, de liderança, para montar o dispositivo todo, para orientar a pesquisa e fazer a distribuição de tarefas, a compilação de material e edição. O que Aurélio tinha, há séculos, era um fichário de averbações que usou largamente para o sentido das palavras, até com um pouco de exagero”. Por certo, Janio de Freitas, um dos mais notáveis jornalistas do país — sabe tudo inclusive de diagramação, por isso foi decisivo na reforma do “Jornal do Brasil”, ao lado do poeta e jornalista Reynaldo Jardim —, tem razão em parte. É preciso reconhecer o trabalho de Hércules de Campelo, mas, para aceitar a evidência, não é necessário desmerecer o competente trabalho intelectual de Aurélio.
Seis meses depois da assinatura do contrato, nada de dicionário. Aurélio ficou “p” da vida ao saber que a editora havia cortado seus estipêndios.
Prestimoso, Campelo começou a enviar os verbetes da letra “A” para teste na Gráfica Primor.
De repente, Campelo descobriu que Aurélio estava negociando com Carlos Lacerda, sem avisá-lo. Iria receber 30 mil reais (valores atualizados), mas Riet decidiu não pagá-lo — o que gerou uma profunda animosidade entre Campelo e Aurélio.
Finalmente, em outubro de 1974, “as primeiras páginas começaram a chegar à Gráfica Primor”. Em março de 1975, 18 mil exemplares de 1.536 páginas, com um total de 120 mil verbetes, chegaram às livrarias de todo o país. A gráfica teve de importar mais papel da Noruega. “A primeira edição saiu com cerca de mil erros, inclusive na grafia das palavras”, conta Cezar Motta.
O livro, gigante, se tornou um best-seller. “Em 11 anos, o ‘Aurélio’ venderia o triplo de toda a obra reunida de Jorge Amado, o mais concorrido autor brasileiro. O caixa da Editora Nova Fronteira ficou abarrotado de dinheiro.
Em pouco tempo, o “Aurélio” se tornou “a palavra final em lexicografia”. Mais tarde, em 2001, surgiu um concorrente de peso, o “Houaiss”, coordenado pelo lexicógrafo e filólogo Antônio Houaiss, o tradutor de “Ulisses”, de James Joyce. (Ao contrário do que postula Cezar Motta, a tradução não é considerada ruim. Pelo contrário, é de qualidade. Complicou ainda mais o romance? Pode até ser. Mas como complicar uma obra já tão complicada? Novas traduções, que devem muito ao trabalho pioneiro de Houaiss, sinalizam que o trabalho anterior permanece valioso, como reconheceu o poeta e tradutor Haroldo de Campos, um joyciano.)
A batalha judicial entre os dicionaristas
Quando o “Míni Aurélio” foi lançado deu-se uma crise. “Aurélio, apoiado pela mulher, Marina Baird, exigiu então que a J. E. M. M. — da própria Marina e de Joaquim Campelo, Elza Tavares e Margarida dos Anjos — ficasse fora dos direitos autorais sobre o ‘Míni Aurélio’”, historia Cesar Motta. Seria, teoricamente, um novo produto, e não o cartapácio “Aurélio”. “Campelo, Elza e Margarida sequer foram informados sobre esta decisão.”
“Campelo, Elza e Margarida recorreram à Justiça. Pelos cálculos de Campelo, foram-lhes sonegados royalties de 360 mil exemplares: ‘Houve um escamoteamento de exemplares nos mapas de venda do editor, ou vendedor, ou comercializador’”, aponta Cezar Motta.
Na Justiça, Aurélio sustentou que “Campelo era partícipe do dicionário, como assistente, apenas por ‘mera liberalidade’ dele, Aurélio, e que, portanto, não poderia pleitear qualquer direito sobre a obra. Principalmente, o ‘Míni Aurélio’, um produto novo”, frisa Cezar Motta.
Numa carta violenta, Campelo chamou Aurélio de “mau-caráter” e “indigno”. A Nova Fronteira reconheceu seu erro e pagou Campelo, Margarida e Elza.
No geral, Aurélio não foi correto com Campelo. No prefácio da primeira edição, o principal criador do “pai dos burros” mencionou 43 pessoas que o ajudaram, mas não arrola Campelo, que foi fundamental para que o dicionário fosse escrito e publicado.
Até 2003, na versão impressa e digital, o “Aurélio”, havia vendido mais de 15 milhões de exemplares.
Aurélio morreu em 27 de fevereiro de 1989, aos 78 anos, de insuficiência respiratória. Sofria do mal de Parkinson desde 1981. A pedido do presidente José Sarney, Campelo foi ao velório, no Rio.
Em 1993, sob a coordenação de Paulo Geiger, saiu o “Aurélio eletrônico”. “A Microsoft lançaria o Windows, e o ‘Aurélio’ pôde ser utilizado em CDs e, um pouco mais tarde, pela internet e por um aplicativo”, escreve Cezar Motta.
A família de Aurélio rompeu com a Nova Fronteira e vendeu os direitos de publicação do dicionário à Editora Positiva por 5 milhões de reais. Doente, em tratamento de leucemia — teria sido curado pelo médico chileno Paulo Dorleac —, Campelo só ficou sabendo da negociação com o grupo do Paraná mais tarde. A editora removeu seu nome e o de Elza Tavares do expediente do “Aurélio”. Eles não receberiam mais nenhum centavo. “O Grupo Positivo explicou que a remoção fora uma exigência da família de Aurélio”, informa Cezar Motta. Sob pressão, o nome de ambos voltou, mas deixaram de receber royalties.
Campelo e Elza Tavares recorreram à Justiça, a pendenga perdurou por 12 anos, e perderam a causa. A desembargadora Denise Krüger Pereira concluiu, no seu relatório, “que Aurélio era o autor único do dicionário”. O desembargador João Domingos Kuster Puppi “foi completamente favorável a Campelo e Elza Tavares”. A escritora Nélida Piñon deu um depoimento favorável aos dois. “Foram mais de 20 anos de devoção, o trabalho de uma vida. Sem Joaquim Campelo e Elza Tavares não haveria o dicionário ‘Aurélio’. Eu vi, eu testemunhei a dedicação absoluta deles. Quando não tinham uma editora, eu sei que o pai de Elza, Osvaldo Tavares, bancou o trabalho de todos, deu dinheiro para que continuassem. O que aconteceu foi um escândalo, o direito autoral é sagrado para um escritor”, disse a ex-presidente da Academia Brasileira de Letras. “Passaralho”, demissão em massa de jornalistas, é uma palavra criada por Campelo — o que prova sua contribuição.
O caso chegou ao Supremo Tribunal Federal e Campelo e Elza Tavares perderam mais uma vez.
A edição impressa do “Aurélio” circulou até 2010.
O resultado, o “Dicionário Aurélio”, sugere: apesar de todas as brigas e inimizades, valeu a pena. O “Aurélio” é a redescoberta do Brasil, de sua Língua Portuguesa — o Brasileiro —, por brasileiros.
A história de Cezar Motta é tão boa, e tão bem contada e dramatizada, que merece ser transformada num filme ou numa série de televisão. O livro é um verdadeiro roteiro.