Empurrou o velhote dentro de um carrinho de compras até o alto da colina, de onde poderiam melhor enxergar a cidade e os arredores. Tiveram que se desviar dos pedintes e dos roedores, esperar alguns minutos até que o vento norte que assoprava naquela manhã dissipasse os abutres veganos e a cerração tóxica, empurrando as aves e o ar carregado por nuvens de chumbo e de nióbio gasoso que cobriam a paisagem. Finalmente, vislumbraram as casas, os prédios, as ruas, os moradores-de-rua e os cidadãos-de-bem-armados-até-os-dentes que preenchiam o vale sujo. Não havia sequer uma árvore dentro do perímetro urbano. Bostas de cachorro pisavam nas pessoas. As flores já tinham sufocado até o talo. Estacionou o senil e caquético progenitor de tal forma que o dito-cujo tivesse uma visão privilegiada de tudo, enquanto ele palestrava. Fechou o fluxo do cilindro de oxigênio, abriu a válvula do gás hilariante, levantou a cabeça do velho empurrando-a pelo queixo, de cima para baixo, sem muita paciência, e desandou a falar.
“Nota de pesar. Um dia, nada disso será teu, papai. Um sol que não aquece. A chuva que derrete a pele. Um povo sem viço no olhar, em quem não se pode confiar. Se for para chorar, vai até o fim, pai. De que vale choramingar agora se já não há lágrimas nos teus olhos, se os sentimentos secaram nos açudes do teu coração? A ciência, que sempre reputamos como comunista, perdulária e fraudulenta, comprovou que os corações nada sentem, pois, são vísceras ignóbeis a bombear, incessantemente, sangue azul pelas artérias, como um rio a correr vinte e quatro horas por dia para a morte certa nos oceanos. Quem manda nas emoções humanas é o cérebro, pai. Um dia, nada mais disso te pertencerá. Rios sem peixe. Florestas sem passarinhos. Ninhos infecundos. Violas sem luar. Uma atmosfera asfixiante do que antes chamávamos oxigênio. Não será preciso ser um gênio para constatar que a educação e a cultura não enchem a barriga de ninguém. Destruímos o planeta, é fato, mas, fizemos a nossa parte: empreendemos. Só os tolos se importam com a história. Tens razão. Mais uma vez, ainda que atolado nesse estado de saúde decrépito, insolúvel, manténs a tua frieza e a tua lucidez. Um dia, nada disso será teu, pai. Discursos prolixos em prol de um desenvolvimento sustentável não factível. O lixo moral acumulado nos parlamentos e nos prédios do poder judiciário. O triunfo da mentira. O povo armado até os dentes, amado pelo demônio, odiado por Deus. As democracias estão mortas, papai. Já vão tarde, sim, eu sei. Há muito choro, mas, não restam inocentes. Quem não dizimou a natureza e a liberdade foi, no mínimo, negligente. Ouve o chamado, pai. É gente que não acaba mais querendo entrar no céu. Não quero ir para um lugar onde não haja coisas a serem destruídas. Aguenta firme, pai. Já estou terminando o meu discurso. Troquei os cilindros de gás. Inspira fundo, tu que sempre me inspiraste iniquidade. Sente as alegres toxinas penetrando as tuas narinas. Serve para os teus pulmões cancerosos, embatumados, este concentrado de gás hilariante. Antes rir do que chorar. C’est la vie. Homem não chora. Mulher não chora. Criança não chora. Ninguém mais se importa com os sentimentos uns dos outros. O mais importante será sempre destruir para depois construir, empreender, derrubar as velharias, furar novos buracos, erguer novas pilastras. Que se dane o patrimônio histórico da humanidade. A empatia acabou já faz tempo. Estamos nos capítulos finais da capitulação da espécie humana sobre a Terra. Vida que segue noutro planeta. As sondas estão no espaço, monitorando vida inteligente fora da burrice reinante. Põe um sorriso franco na tua cara, pai. Ajudar-te-ei com os dedos indicadores. Diz-me para onde não ir. Mostra que valeu a pena figurar entre os dez homens mais ricos da Forbes. Sê forte, papai. Tosse. Escarra. Lança derradeiros perdigotos sobre essa terra arrasada. Esquece a dor lancinante. Sorri, pai, eu te suplico, sorri. Em breve, nada disso será mais da tua laia e da tua alçada. Fotos esquecidas nas gavetas. Desamor. A falta de reconhecimento por parte dos teus descendentes, sangue do teu sangue que mais parece fel do que sangue. Em memória de ti, te esqueceremos. Gratidão nunca foi o forte da família, uma das mais poderosas, abastadas e tradicionais desse pestilento mundo desterrado. Adeus, pai. Vai com Deus. Te encontro no limbo.”
Empurrou o carrinho de compras e o velhote capotou, a sorrir um riso que não era o seu, pelas encostas pedregosas do morro triste, sujo e uivante.
*O título da crônica é um verso escrito por Lennon & McCartney.