Não matarás, cidadão de bem

Não matarás, cidadão de bem

Meu pai é um sobrevivente. Já teve o sangue chupado por insetos barbeiros. Já capotou de Kombi. Já extirpou tumor. Já foi atacado por enxame de vespas. Já atropelou a si mesmo com um trator. Já fraturou sete costelas. No auge dos 81, contrariando as recomendações dos médicos, ainda reúne forças para capinar o quintal, para arrancar as pragas da grama, para construir um novo galinheiro usando sucata.

Nas últimas semanas, ele aguarda ansioso pela sua vez de tomar vacina contra a Covid-19. Ele diz que, em termos de sobrevida, já deu o que tinha que dar, que já estava nos acréscimos do segundo tempo, mesmo assim, reclama da morosidade e da incompetência do governo federal. Enquanto cavouca a terra com os seus braços esquálidos, de veias salientes queimadas pelos sóis dos últimos oitenta anos, ele comenta que o presidente, “aquele destemperado”, está saindo pior do que a encomenda. “Não devia ter votado nesse sujeito”, ele confessa, claramente arrependido, enquanto esmaga cupins com a botina esfarrapada.

Mudando de assunto, conta que o seu quintal fora invadido por galos e galinhas garnisés. Os animais debandaram da chácara de um vizinho que se mudou às pressas, largando-os à própria sorte. Impelidos pela fome, os bichinhos gostaram de ir ficando, aninharam-se nos locais mais inusitados e estavam proliferando tanto quanto notícia ruim. Meu velho deixou crescer no coração chagásico um amor condoído pelas aves, as quais aprenderam a comer quirelas nas suas mãos. A cena é engraçada. Ele conversa com as penosas reunidas ao seu redor, afinando a voz, como se falasse com criancinhas.

Ando saudosista. Um inferno. Lembro-me do meu pai me ensinando a dar tiro em latas de extrato de tomate. Eu devia ter uns 12 anos, sei lá, não tenho certeza. Colocou o 38 na minha mão. Achei aquela coisa fria pesada demais para o meu muque. Pediu que eu não tremesse, que eu mantivesse os braços firmes, semi-flexionados e apontados para o chão, onde enfileirou um punhado de latinhas vazias. Alertou-me sobre o coice que a arma dava e orientou que eu atirasse na cabeça do elefante. A aula foi um fiasco. Gastei munição à toa. Não tomei gosto pelo revólver e ele nunca mais tocou no assunto. Mantinha armas em casa por dois motivos básicos: para se defender dos invasores, caso fôssemos invadidos, coisa que nunca ocorreu; para atirar em onça, se fossemos atacados, e isso nunca sucedeu, para sorte nossa e das onças.

Da última vez que visitei o meu pai, assistimos juntos, pela TV, ao presidente da república vociferando que enviaria projetos de última hora ao Congresso Nacional, a fim de acelerar o processo de armamento da população. Carecia “armar o cidadão de bem”. Está cumprindo à risca uma das suas principais promessas de campanha, ocasião em que ele, os seus seguidores e os seus apoiadores imitavam armas utilizando, de forma patética, os dedos das mãos.

Papai anda combalido e não deveria estar dirigindo automóveis. Mesmo assim, sujeito teimoso, ele vai usar o sistema de drive-thru para se vacinar na próxima semana. Hora e vez dos acima de oitenta. Não se importa em tomar a vacina chinesa, desde que mande o vírus para as cucuias. Apesar de estar cumprindo hora-extra, como ele próprio gosta de brincar, é óbvio que ama viver e ainda tem muito querosene pra queimar e anseia por um país melhor de se viver, mais seguro, sem onças e sem invasores, com menos desigualdade e maior justiça social. Aquele tipo de disparidade histórica, mesquinha, que não vai ser resolvida à bala. Bem que eu te avisei, pai.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.