O meu contato com a obra de J.J. Veiga foi tardio, porém marcante. No início dos anos 1980, o pré-vestibular para a Universidade Federal de Goiás me apresentou a literatura de Carmo Bernardes, Hugo de Carvalho Ramos e Bernardo Élis. Na faculdade, eu me encantei com a poesia de Cora Coralina. Já naquela época, eu sempre ouvia alguém comentando sobre Veiga, o que me despertava o interesse em ler algo dele, mas nunca dava certo. Não lastimo. Acho que foi profícuo descobrir a prosa veigueana apenas na minha madurez, quando concebo ter um pouco mais de tino do que na juventude.
Há cerca de 2 anos, no tempo dos dias macios, fruíamos um sábado à noite na Rua do Rosário, em Pirenópolis. Lá, praticávamos o autêntico epicurismo goiano, bebericando, petiscando e jogando conversa fora, quando apareceu um cidadão (um caboclo, como diria Veiga) vendendo uns livros de sua própria lavra. Comprei-lhe dois exemplares e elogiei sua labuta. Trocamos uns dois dedos de prosa e acabamos falando sobre J.J. Veiga. Não poderia ser mais simbólico: eu topava com a lembrança do Veiga exatamente na sua terra (ele nasceu na fazenda Morro Grande, entre Pirenópolis e Corumbá). Era um sinal.
Pouco meses depois, perambulando por São Paulo, farejei uma livraria nas proximidades da Paulista. Com olhos de ourives e paciência de Jó, fui examinando as intermináveis prateleiras apinhadas de emoções escritas. Aprazível tarefa. Sorri, vitorioso, quando achei “Os Cavalinhos de Platiplanto” e “Sombras de Reis Barbudos”. Investi a bagatela de 23 reais. Ô divertimento barato — pensei. Chegando a Goiânia, Li “os cavalinhos”, escrito em 1959. Texto firme, direto, simples sem ser banal. Deixei os “reis barbudos” descansando na estante. Há coisa de 2 meses, li “A Hora dos Ruminantes”, de 1966, e, enfim, “Sombras de Reis Barbudos”, de 1972. Romances primorosos, diferentes, instigantes. Eu me embrenhava nos labirintos do Veiga.
Embrenhei-me por poucas léguas, é verdade. Os três livros são clássicos, mas representam uma gleba no latifúndio ficcional do autor. Além do alumbramento, a leitura ficou-me como aperitivo para futuras incursões. Como Tolstói, Veiga cantou suas aldeias goianas e fez-se universal. Sua matéria era o homem do interior, mas poderia ser o do Rio de Janeiro ou de Londres (intrinsecamente, todos são feitos da mesmíssima substância). Às pacatas vilas interioranas, arcádias de felicidade aparente, Veiga fazia chegar o desconhecido, o estranho, o insólito. A chegada desse ente perturbador, por vezes hostil e repressivo, e os efeitos dele sobre aquelas vidas pequenas e contidas, é que formariam o mosaico para as estórias do escritor.
José Jacinto Veiga foi um sujeito desbravador. Um bandeirante às avessas, pois o seu ouro era outro. Nasceu na roça, estudou no Lyceu de Goyaz, foi caixeiro das Lojas Pernambucanas. Aos 20 anos, mudou-se pro Rio de Janeiro, onde trabalhou como propagandista de remédios, radialista e escriturário. Obstinado, fez-se advogado na Faculdade Nacional de Direito. Depois, deu vazão à sua alma irrequieta mudando-se para Londres, onde permaneceu por 5 anos, trabalhando na BBC. De volta ao Rio, o amigo goiano de Guimarães Rosa reencontrou seu dom e nos legou uma literatura mágica e forte.
Veiga disse numa entrevista que o que esperava da sua obra era que ela causasse desassossego nos leitores. Eu acho que esse é o seu grande mérito. Tirar-nos da zona de conforto. Nos desassossegar. Levar-nos a pensar sobre nossas crenças, medos, fraquezas e sonhos. Em fevereiro, completam-se 106 anos do nascimento do autor. Tomara que esta crônica desperte o interesse por um dos maiores tesouros literários do Brasil, que anda meio esquecido: José J. Veiga, o genial tecedor do insólito.