Tramas e trapaças em 22 microcontos

Tramas e trapaças em 22 microcontos

O gênero microcontos encontrou terreno fértil, no Brasil, para  desenvolver-se. Com muito controle narrativo, concisão e talento, nossos contistas apreenderam e dominaram a técnica da narrativa curtíssima. A Revista Bula exerce papel relevante nesse processo, ao organizar e publicar diversas coletâneas, forma exitosa de difundir e popularizar o estilo. Consequência dessa iniciativa, a criação de instigantes e pequenos (pequenos mesmo!) clássicos. Um deleite, estes novos microcontos, que chegam para incitar os leitores a envolver-se nas tramas e trapaças arquitetadas, sem enrolação, por seus autores.


Modernidade

Conta-se que a medusa, uma vez aposentada do mito, abriu um salão de beleza especializado em cabelos revoltosos. Vive de tesoura à mão, para desespero de suas serpentes. E é muito procurada, porque garante a beleza eterna de suas clientes, transformando-as em pedra.

José M. Umbelino Filho


Cancelado

Então, fui cancelado? – perguntou Woody Allen. Foi! – respondeu gritando o universitário meio sujo segurando um cartaz com erros de ortografia. Isso significa que vão tirar meu nome da enciclopédia? – perguntou Woody Allen. O universitário meio sujo não sabia o que responder, então só gritou.

Roberta Ribeiro


Nota oficial

A Cia de Saneamento informa: devido às condições climáticas, às condições de infraestrutura e às condições impostas pelo poder público e privado, os seus planos de abastecimento foram por água abaixo. Apesar da falta d’água, os cortes no fornecimento serão mantidos em casos de inadimplência.

José Fábio da Silva


Arteiro

Toca campainha e sai correndo. Desliga o padrão de energia do vizinho. Atira saco com água ou cocô da altura do prédio. Joga papel higiênico molhado no teto. Pó de mico no ventilador parado. Uns chamam demônio, outros: infância.

Leonardo Teixeira


Mudança

Ela era maçã, depois se tornava uma pera, em seguida, uma banana. “Ai, meu maracujazinho do campo, vou te comer, meu mamão, vou te chupar, minha uva”. Ela era um pomar, doce e gostoso. Foi aí que aconteceu: ele enjoou da fruta.

Hélverton Baiano


Doutor

A banca de doutorado durou oito horas e uns quebrados. O doutorando, com o fim da bolsa de pesquisa, estava quebrado. Terminada a banca, transformado oficialmente em doutor e oficiosamente tornado desempregado, não foi comemorar. Saiu da banca e foi direto ao banco, puxar o extrato de sua conta corrente. Sua tese tinha quase mil páginas, ganhou quase cem dos avaliadores e tirou quase dez do caixa eletrônico. A esperança do eminente jovem doutor é que, em breve, tendo em mãos o papel moeda do diploma, possa multiplicar a moeda de papel em suas mãos.

Ademir Luiz


Vento

Durante a passagem da tarde sobre a concha na praia, um redemoinho desperta um desejo antigo. Por causa de sua estrutura etérea, o vento persegue as formas concretas.

Solemar Oliveira


Desistência

Saltar de paraquedas era seu fascínio.  A liberdade dos céus, a face e os gestos ao vento superavam, por instantes, sua amarga existência. Naquele dia as trovoadas e os vendavais internos não permitiam saltos. O paraquedas teve outra utilidade. Suas cordas abraçaram o caibro. Entre seus pés e o solo, um banco virado.

Elizabeth Caldeira Brito


Sepulcral

Lembrança. O único vestígio de que ele existiu.

Brenda Santos


Percurso

Correu. Correu. Correu. Morreu. Ou: Corri. Corri. Corri. Morri?

Amanda Godoi


Medo

Seu maior medo era de morrer e nunca mais beber.

Thiago Henri


Qual terra? 

Promised Land or Neverland? Terra Prometida ou Terra do Nunca?

Jairo Alves Leite


Se enrolou

Cortou. Moldou. Remodelou. Vestiu. Não se viu. Encurtou. Se divertiu. Se revestiu. Se revelou. Teceu um eu que era seu. Ai, meu Deus, será que se perdeu?

Amanda Milanez


Duelo

No duelo, antes dos dez passos, um virou-se de súbito. Morreu. Alguém atirara.

Rafael Ribeiro Fleury


Vida urbana

A cada um minuto, uma pessoa é vítima de violência. Em cinco minutos eu faço um miojo.

Carlos Alberto Neiva


Noite

Ele pensou que nunca veria a luz, mas o Sol já estava nascendo.

Leonardo Rodrigues


Luz

E disse Tibbets: “Faça-se a luz!” E abriram-se as comportas do Enola Gay.

Cristiano Deveras


Quaresma

Espiava por uma frestinha, as almas barulhentas que caminhavam. Seu medo era tanto, que voltou para a cama. Então, lembrou de rezar.

Wanessa Costa


Madrigal

Em silêncio. O rio passava por ela e ela passava pelo rio. Um diálogo com as águas era o que lhe caía naquela hora. O ar quente do cigarro ofendia a pureza do lugar. Gostava daquela transa de água e vento. E os que ali estavam, iletrados, mal sabiam que ela e o rio eram amantes.

Andreia Marquezan


Essência

Ele é assim. Tentou, tentou, e nada adiantou. Ele é assim!

Dyellyngton dos Santos


Tempestade

Da tempestade restaram algumas folhas secas sobre o livro eterno da minha alma. Fui lançado para além das palavras corriqueiras, escriba solitário que busca o verso desvairado no recôndito daquela nuvem sem destino. Sem metas, a priori, talvez um metafísico que ultrapassou o nirvana para buscar a palavra cética. Escravos do asfalto aprisionaram a poesia em mais uma notícia cheia de sangue e de lágrima. O poeta escreve mais um verso no a posteriori da inspiração.

Giovani Ribeiro Alves


Cinquenta anos

Lenio deitado  em decúbito  dorsal. Desanimado,   cansado,  dolorido. Eu ali tentando  atenuar  com folhas  de bálsamo  envolvidas  em pano quente.  Cabelos caídos  em sua face. Costas  nuas, a suástica em tons de budismo  e nazismo, colados,  sempre  me assusta.  Nunca ousei  perguntar nada. Sou mulher  de curtas palavras  e homem  nem gosta de conversa  espichada.  Sei disso.  Melhor  lustrar,  limpar  as dúvidas e ferimentos.  Dar um dengo. Homem prefere isso. Um dia descubro.  Como  Anesia falou : um dia descubro. E faço escaldado  com ovo.  Ele nem vai desconfiar.  Como Anesia falou. Cinquenta anos com o mesmo homem. Ela entende do assunto.

Sônia  Elizabeth


Destino

Após a discussão, ele ouviu soluços. Fingiu que não. Virou para o lado. Com o descaso do amante, ela se fez de morta. E dormiu mal. Acordou mais cedo. Saiu sob soluços. Falhou, o freio. Gritos! Na manhã molhada, Maria foi-se.

Lêda Selma