O gênero microcontos encontrou terreno fértil, no Brasil, para desenvolver-se. Com muito controle narrativo, concisão e talento, nossos contistas apreenderam e dominaram a técnica da narrativa curtíssima. A Revista Bula exerce papel relevante nesse processo, ao organizar e publicar diversas coletâneas, forma exitosa de difundir e popularizar o estilo. Consequência dessa iniciativa, a criação de instigantes e pequenos (pequenos mesmo!) clássicos. Um deleite, estes novos microcontos, que chegam para incitar os leitores a envolver-se nas tramas e trapaças arquitetadas, sem enrolação, por seus autores.
Modernidade
Conta-se que a medusa, uma vez aposentada do mito, abriu um salão de beleza especializado em cabelos revoltosos. Vive de tesoura à mão, para desespero de suas serpentes. E é muito procurada, porque garante a beleza eterna de suas clientes, transformando-as em pedra.
José M. Umbelino Filho
Cancelado
Então, fui cancelado? – perguntou Woody Allen. Foi! – respondeu gritando o universitário meio sujo segurando um cartaz com erros de ortografia. Isso significa que vão tirar meu nome da enciclopédia? – perguntou Woody Allen. O universitário meio sujo não sabia o que responder, então só gritou.
Roberta Ribeiro
Nota oficial
A Cia de Saneamento informa: devido às condições climáticas, às condições de infraestrutura e às condições impostas pelo poder público e privado, os seus planos de abastecimento foram por água abaixo. Apesar da falta d’água, os cortes no fornecimento serão mantidos em casos de inadimplência.
José Fábio da Silva
Arteiro
Toca campainha e sai correndo. Desliga o padrão de energia do vizinho. Atira saco com água ou cocô da altura do prédio. Joga papel higiênico molhado no teto. Pó de mico no ventilador parado. Uns chamam demônio, outros: infância.
Leonardo Teixeira
Mudança
Ela era maçã, depois se tornava uma pera, em seguida, uma banana. “Ai, meu maracujazinho do campo, vou te comer, meu mamão, vou te chupar, minha uva”. Ela era um pomar, doce e gostoso. Foi aí que aconteceu: ele enjoou da fruta.
Hélverton Baiano
Doutor
A banca de doutorado durou oito horas e uns quebrados. O doutorando, com o fim da bolsa de pesquisa, estava quebrado. Terminada a banca, transformado oficialmente em doutor e oficiosamente tornado desempregado, não foi comemorar. Saiu da banca e foi direto ao banco, puxar o extrato de sua conta corrente. Sua tese tinha quase mil páginas, ganhou quase cem dos avaliadores e tirou quase dez do caixa eletrônico. A esperança do eminente jovem doutor é que, em breve, tendo em mãos o papel moeda do diploma, possa multiplicar a moeda de papel em suas mãos.
Ademir Luiz
Vento
Durante a passagem da tarde sobre a concha na praia, um redemoinho desperta um desejo antigo. Por causa de sua estrutura etérea, o vento persegue as formas concretas.
Solemar Oliveira
Desistência
Saltar de paraquedas era seu fascínio. A liberdade dos céus, a face e os gestos ao vento superavam, por instantes, sua amarga existência. Naquele dia as trovoadas e os vendavais internos não permitiam saltos. O paraquedas teve outra utilidade. Suas cordas abraçaram o caibro. Entre seus pés e o solo, um banco virado.
Elizabeth Caldeira Brito
Sepulcral
Lembrança. O único vestígio de que ele existiu.
Brenda Santos
Percurso
Correu. Correu. Correu. Morreu. Ou: Corri. Corri. Corri. Morri?
Amanda Godoi
Medo
Seu maior medo era de morrer e nunca mais beber.
Thiago Henri
Qual terra?
Promised Land or Neverland? Terra Prometida ou Terra do Nunca?
Jairo Alves Leite
Se enrolou
Cortou. Moldou. Remodelou. Vestiu. Não se viu. Encurtou. Se divertiu. Se revestiu. Se revelou. Teceu um eu que era seu. Ai, meu Deus, será que se perdeu?
Amanda Milanez
Duelo
No duelo, antes dos dez passos, um virou-se de súbito. Morreu. Alguém atirara.
Rafael Ribeiro Fleury
Vida urbana
A cada um minuto, uma pessoa é vítima de violência. Em cinco minutos eu faço um miojo.
Carlos Alberto Neiva
Noite
Ele pensou que nunca veria a luz, mas o Sol já estava nascendo.
Leonardo Rodrigues
Luz
E disse Tibbets: “Faça-se a luz!” E abriram-se as comportas do Enola Gay.
Cristiano Deveras
Quaresma
Espiava por uma frestinha, as almas barulhentas que caminhavam. Seu medo era tanto, que voltou para a cama. Então, lembrou de rezar.
Wanessa Costa
Madrigal
Em silêncio. O rio passava por ela e ela passava pelo rio. Um diálogo com as águas era o que lhe caía naquela hora. O ar quente do cigarro ofendia a pureza do lugar. Gostava daquela transa de água e vento. E os que ali estavam, iletrados, mal sabiam que ela e o rio eram amantes.
Andreia Marquezan
Essência
Ele é assim. Tentou, tentou, e nada adiantou. Ele é assim!
Dyellyngton dos Santos
Tempestade
Da tempestade restaram algumas folhas secas sobre o livro eterno da minha alma. Fui lançado para além das palavras corriqueiras, escriba solitário que busca o verso desvairado no recôndito daquela nuvem sem destino. Sem metas, a priori, talvez um metafísico que ultrapassou o nirvana para buscar a palavra cética. Escravos do asfalto aprisionaram a poesia em mais uma notícia cheia de sangue e de lágrima. O poeta escreve mais um verso no a posteriori da inspiração.
Giovani Ribeiro Alves
Cinquenta anos
Lenio deitado em decúbito dorsal. Desanimado, cansado, dolorido. Eu ali tentando atenuar com folhas de bálsamo envolvidas em pano quente. Cabelos caídos em sua face. Costas nuas, a suástica em tons de budismo e nazismo, colados, sempre me assusta. Nunca ousei perguntar nada. Sou mulher de curtas palavras e homem nem gosta de conversa espichada. Sei disso. Melhor lustrar, limpar as dúvidas e ferimentos. Dar um dengo. Homem prefere isso. Um dia descubro. Como Anesia falou : um dia descubro. E faço escaldado com ovo. Ele nem vai desconfiar. Como Anesia falou. Cinquenta anos com o mesmo homem. Ela entende do assunto.
Sônia Elizabeth
Destino
Após a discussão, ele ouviu soluços. Fingiu que não. Virou para o lado. Com o descaso do amante, ela se fez de morta. E dormiu mal. Acordou mais cedo. Saiu sob soluços. Falhou, o freio. Gritos! Na manhã molhada, Maria foi-se.
Lêda Selma