Felipe Neto é o maior crítico literário do Brasil

Felipe Neto é o maior crítico literário do Brasil

Felipe Neto é uma espécie de George Lucas brasileiro. Da mesma forma que o cineasta americano, Felipe Neto começou a carreira com tudo e aos poucos foi se perdendo. Virou produtor e, para não sair do cenário, começou a produzir conteúdo infanto-juvenil. Atualmente, decidiu que é comentarista político e tem certeza de que está do lado do bem. O mais inusitado é que mesmo cometendo os erros mais evidentes, os dois conseguem ser incrivelmente bem-sucedidos na maior parte de seus empreendimentos. Coisa de gênio! Conseguir capitalizar as próprias inabilidades não é para qualquer um. Mas existe um público imenso e fiel de interessados em acompanhar as novas “aventuras” da dupla.

Atualmente, o Brasil está na berlinda. Felipe Neto, desta vez, conseguiu superar George Lucas. A mais recente polêmica do youtuber foi sua declaração de que “forçar adolescentes a ler romantismo e realismo brasileiro é um desserviço das escolas para a literatura. Álvares de Azevedo e Machado de Assis não são para adolescentes! E forçar isso gera jovens que acham literatura um saco”. Ninguém se importou muito com Álvares de Azevedo, mas a inclusão de Machado de Assis fez muita gente cair de joelhos, gritar, ranger os dentes, rasgar as roupas e arrancar os cabelos.

Para ser honesto, Felipe Neto não está totalmente errado. Mais uma vez, ele acertou errando. Porém, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no Brasil são considerados adolescentes pessoas na faixa etária entre 12 e 18 anos, com exceções que podem alcançar até os 21. É bom lembrar que Álvares de Azevedo morreu com 20 anos. Segundo Felipe Neto, o poeta da “Lira dos Vinte Anos” é um adolescente que não deve ser lido por adolescentes. Em todo caso, apesar de a legislação do ECA discordar, existe uma imensa diferença entre pirralhos de 12 anos e marmanjos de 21.

Talvez 12 ou 13 anos não seja a idade ideal para ler “Dom Casmurro”, “Quincas Borba” ou “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, mas não vejo problema nenhum em jovens de 16 ou 17 anos serem apresentados ao melhor de nossa literatura. Até mesmo um meio-termo é possível. A divertida novela “O Alienista” e contos como “A Igreja do Diabo”, “O Espelho” ou “A Cartomante” estão perfeitamente ao alcance dos jovens leitores de 14 ou 15. Vou mais longe: o conto “A Teoria do Medalhão” deveria ser leitura obrigatória para quem completa 18 anos. Por mais que tenha sido consagrado pela academia, definir Machado de Assis simplesmente como “realismo brasileiro” é de uma pobreza conceitual lamentável. O Bruxo de Cosme Velho é muito mais do que isso. Talvez Felipe Neto não se lembre, mas o estilo de Machado de Assis é extremamente moderno, irônico e ágil. Sua obra parece que foi escrita hoje pela manhã.

A linguagem literária do “arcaico” Machado de Assis é, por exemplo, muito mais “moderna” do que a do contemporâneo Stephen King, até onde se sabe o escritor preferido de Felipe Neto. Para termos uma percepção desse paradoxo cronológico, basta saber que uma das maiores influências de Stephen King é Arthur Machen, autor do instigante “O Grande Deus Pã”, uma novela de horror curta e direta, publicada no final do século 19. Já  o Machado de Assis da maturidade inspirou-se, sobretudo, no até hoje surpreendente e vanguardista “A Vida e Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy”, de Laurence Sterne, publicado em nove volumes a partir de 1759. Vale dar um Google para captar o tamanho do abismo entre os dois autores. Fica a dica, Felipe.

Stephen King é basicamente um bom contador de histórias. Com raras exceções, ele não ousa nem na forma nem no conteúdo. Seus contos, novelas e romances possuem começo, meio e fim bem delimitados. É comum que apresente idas e vindas no tempo e algum desenvolvimento psicológico dos personagens, mas nada muito complexo ou profundo, que possa atravancar a trama. Embora verborrágico, é competente na produção da literatura ligeira que se propõe a fazer: produtos para serem lidos no aeroporto ou antes de dormir. O próprio Stephen King, no livro “Sobre a Escrita”, reconhece humildemente suas limitações diante dos mestres. Talvez seja mais humilde que seus leitores.

Acho curioso que Stephen King seja o autor preferido de alguém com mais de 17 anos. Talvez a grande questão seja exatamente essa: Felipe Neto partiu de sua própria percepção sobre estética para criar o juízo universal que defendeu no polêmico post. Mas poderia ser pior: poderia ser George Lucas escrevendo que os adolescentes americanos deveriam parar de ler “O Apanhador no Campo de Centeio”. Afinal, o que um velho doido como Salinger, que tomava a própria urina, poderia ter para ensinar?

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.