Carta de Brás Cubas ao presidente Bolsonaro

Carta de Brás Cubas ao presidente Bolsonaro

Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1908

Sr. Jair Messias Bolsonaro, presidente da República Federativa do Brasil

Excelência,

Devo, antes de perorar, apresentar-me ao sr., o político de 57,7 milhões de eleitores. Ah, o Instituto Quincas Borba informa que 42,1 milhões de eleitores não votaram, no segundo turno, em nenhum dos candidatos. O conselheiro Aires informa que um terço disse “não” à direita e à esquerda. Helena, minha hermana, anota que 47 milhões de eleitores apostaram no preclaro Fernando Haddad, do PT, o partido do líder marítimo. Mas, como dizia, preciso me apresentar, pois não é qualquer dia que se pode dialogar, ainda que por missiva, com um líder de sua estatura, governante dos destinos de 210 milhões de brasileiros vivos (mais de 200 mil já morreram de Covid-19, uma bomba atômica, diria meu parça Yukio Mishima). Meu nome é Brás, ou melhor, Brás Cubas, o escritor que criou o personagem mais fascinante da literatura patropi — Machado de Assis, o José Maria do Cosme Velho, o Bruxo. Mesmo morto precocemente, com mais de 19 anos, é claro, deixei uma obra que, de Carlos Drummond de Andrade a Guimarães Rosa e Antonio Candido, dizem “ímpar”. O sr. deveria ler um romance algo esquecido de minha autoria — “Memorial de Aires”. O presidente José Sarney, o imortal, leu e gostou tanto que se tornou escritor, saindo por aí a espalhar marimbondos nucleares.

Presidente, data vênia: não sou vaidoso, mas, como até o seu Renan e o Ernest francês sabem, sou autor do mais importante romance brasileiro, “Memórias Póstumas de Machado de Assis”, e pai intelectual de uma geração de escritores — todos, a rigor, filhos de Sterne, o Laurence, criador do extraordinário “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy” (caro Messias, peça para o Ernesto Araújo, sempre ao seu lado, na bonança e na intempérie, para não confundir com Xande Negão, o ex de Marina Ruy Barbosa), que saiu no Brasil numa tradução, de rara excelência, do poeta, crítico e, sim, químico José Paulo Paes. Como eu ia dizendo, antes de lembrar-lhe que sou um morto-vivo — como Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, com virtudes e defeitos, políticos e gestores inesquecíveis —, não sou vaidoso. Com seu inglês da rainha, Hamilton Mourão, o vice, deve ter lhe dito que o escritor americano Philip Roth me rendeu homenagem no romance “Indignação”, que é inspirado em “Memórias Póstumas de Machado de Assis”. Prez, please, não houve plágio — não fale disso no Parler e no Telegram. O romance ,— quiçá uma novela —, “Enclausurado”, de Ian McEwan, certamente inspirou-se na minha obra-prima. A tradução, diga-se, é do diplomata Jorio Dauster, que, aos 83 anos, está aposentado. Peça, caro Messias — será que posso chamá-lo assim, com certa intimidade? —, para o Ernesto Araújo pedir uns conselhos ao Dauster (esclareça que não é Duster), que sabe tudo sobre negócios.

Bolsonaro, my capitain, esta carta é para falar de vacinação. Mas, como pós-realista, às vezes pego-me cedendo ao parnasianismo. Por isso a demora — proustiana? — de dizer as coisas. Demora ou enrolação, digamos. Como o sr. e Michelle sabem, escrevi um conto no qual meu personagem Sales tem mil projetos para mudar tudo. Mas não muda nada, nem ele mesmo. O Sales é o homem dos mil projetos, mas não executa nenhum. O Sales do sr., o Ricardo, sem coração de Leão e desparceiro de Shakespeare, o do “Ricardo III”, assemelha-se ao meu Sales. A diferença entre eles é mínima — reside na letra “L”. O meu Sales tem um “L” e ele, latifundiário, tem dois.

Prez, como sabe, estou morto, e não foi de gripe espanhola, de malária, de peste bubônica ou de raiva. Bentinho contou para Escobar, nos tempos em que eram amigos, que Capitu só escapou da varíola por causa da vacinação em massa promovida pelo presidente Rodrigues Alves, que era orientado pelo cientista Oswaldo Cruz, que se especializara no Instituto Pasteur, em Paris, na França de Charles de Gaulle e, também, de Marine Le Pen. Rodrigues Alves morreu de gripe espanhola, porque, prezado Messias, não havia vacina. Oswaldo Cruz morreu com menos de 50 anos — com problemas renais incontornáveis. Sabe aquele edifício mourisco da Fiocruz, no Rio de Janeiro? Pois, sim: foi construído na gestão de Oswaldo Cruz, insistamos: um cientista de primeira plana.

Capitain, old master, espero que não perceba desrespeito na minha linguagem algo modernista. Morri 14 anos antes da Semana de Arte Moderna, mas não sei se será vaidade sugerir que, mesmo assim, permaneço mais moderno do que a maioria dos escritores ditos modernistas, como Graça Aranha (nada mais tradicional, oh, bom Deus!), Mário de Andrade e Oswaldo de Andrade. Meu rival? Se há um, ao menos um, tende a ser Guimarães Rosa, aquele João, médico da aprazível Cordisburgo, que escreveu, com o apoio de Manuelzão, “Grande Sertão: Veredas”. O Salles, o seu, certamente não aprecia o romance, devido ao título, que, segundo ele, deveria ser: “Grande Desertão: Sem Veredas”. Sou um mestre da ironia, mas chega. Falemos de vacina, a de 50% ou a de 70% de eficácia.

Caro Jairzinho (desculpe-me, mas estou ficando cada vez mais confiado; peça, please, para o ministro da Justiça, André Luiz de Almeida Mendonça, pastor e advogado, não me processar. Não se deve acionar mortos judicialmente, nem no tribunal do respeitável Chico Xavier), saiba que precisamos falar de Kevin, ou melhor, de vacina e dos nossos mortos. Não tive filhos, como sabe o Paulo Roberto Nunes Guedes (nascido em 1949, como o governador Ronaldo Caiado), que leu pelo menos seis livros de literatura — quatro romances e dois de contos (quiçá “Teoria do Medalhão” e “O Alienista”) — e uns dois de ciência, tanto que quer ser vacinado e diz que a vacinação vai ajudar na recuperação da economia, como estímulo seminal ao crescimento. Pois é: não tive filhos, mas criei vários garotos, como Machado de Assis, Capitu, Carmo, Bentinho, Escobar, Helena, Sales, Aires, Quincas Borba e Simão Bacamarte (o sr. gosta deste personagem? Eu, confesso, adoro). Deles, inclusive Machado de Assis, todos ou quase todos estão vivos, reverberando por aí. Eu, pelo contrário, morri e, paradoxalmente, estou vivo. Há quem postule que, como Simão Bacamarte, estou vagando pelo Palácio do Planalto e pela Esplanada dos Ministérios, como personagem do teatro do absurdo (Ionesco, sempre abaixo de Deus, manda lembranças para o sr.). Mas não acredito. Na verdade, estou no Céu, ao lado de Deus e de São Pedro. O sr., como Messias, pode até duvidar, mas ouvi São Pedro dizendo para o Supremo: “Só vou enviar mais chuva se o Salles parar de ser tão gentil com os desmatadores, e não só os da Amazônia”.

Mas, putz!, o que um morto tem a dizer a um vivo? Que no longo prazo todos estaremos mortos, segundo São Keynes, ao qual Paulo Guedes tem, ou parece ter, horror. Prez, o sr. certamente sabe quem é o Lord Maynard, pois, aqui e ali, parece mais com ele do que com o Posto Ipiranga. Talvez por ser mais político. A equipe econômica quer fechar agências do Banco do Brasil e, para tanto, precisa demitir milhares — cerca de 5 mil funcionários (a população de uma cidade pequena, e sem contar seus familiares). Afirma-se que se trata de demissão voluntária, mas, Messias, de voluntária não tem nada. Os sujeitos aceitam a demissão, sob pressão, e, em pouco tempo, não têm mais dinheiro, ficando à mercê do subemprego. Aposto que, com 100 mil ou 150 mil reais, o presidente do BB, André Brandão, não teria coragem de abrir nenhum negócio num país de economia tão instável. Prez, mortos não deveriam reclamar tanto, mas preciso lhe contar. Bentinho, meu filho adotivo, resolveu fazer uma fezinha na Mega-Sena e, na Lotérica, entregou o cartão de débito do Banco do Brasil. Pois não é que ficou com cara de tacho ao saber pela simpática atendente, dona Carmo, mulher do conselheiro Aires, que a Caixa Econômica Federal, o maior “cassino” do país, não aceita mais cartão do BB. Bentinho teve de ligar para Capitu, que avisou Escobar, meu companheiro de tertúlias amorosas, que levou o dinheiro para os três jogos e para o bolão do qual participo com nove desconhecidos.

Prez, eu estava falando da vacina, até ser bruscamente interrompido por Machado de Assis, que tem ciúme de seus personagens e quer roubar-lhe as falas. O lugar de fala, acho. Mesmo morto, quero ser vacinado. Como lhe disse no preâmbulo desta carta imensa, mais de 200 mil brasileiros já morreram por causa do novo coronavírus. Mais brasileiros morrerão. Mas, com a vacina, morrerão menos e, adiante, talvez não morra mais ninguém. Messias, o sr. se faz de durão, mas já me disseram que, no fundo, é uma manteiga derretida. Faça, por favor, como o Mourão, o Hamilton: vacine-se e incentive, com sua autoridade, algo populista, os demais a se vacinarem. Quincas Borba, que sabe das coisas vivas e das coisas mortas, me disse que as empresas vão pressionar seus funcionários a se vacinarem. Porque, se a empresa tem 50 trabalhadores e apenas dois não querem se vacinar, o que acontecerá? Sob pressão dos colegas, os dois anti-vacina logo se vacinarão. Uma questão de ciência? E de lógica, diriam Natalia Pasternak e Margareth Dalcolmo — as mulheres do ano de 2020. Porque são vozes iluministas, como Diderot.

Messias, meu amigo ,— acho que posso chamá-lo assim, não é? —, minha Carolina, a Augusta, pediu para eu não falar a respeito, mas, com minha boca grande, não sei ficar calado, ainda mais por carta. Por isso vou dizer: sua missão é “destruir” a direita e “ressuscitar” a esquerda? Fala-se muito que o centro pode voltar ao poder, depois de seu radicalismo. Mas e se a esquerda voltar ao poder? Há quem, mesmo não sendo de esquerda, já começa a avaliar que a direita, por causa do sr., é “pior” (as aspas significam que o adjetivo não reflete minha opinião; como sabe, mortos preferem verbos e substantivos).

Presidente, desculpe-me por ter tomado o seu precioso tempo. Mas eu precisava dizer: a vacinação é incontornável. O sr. verá. Então, Messias, chegou a hora de negociar com a vida, porque, de morto, basta eu, Brás Cubas. Seja, caro Prez, um apóstolo da vida — não da morte. Pense mais no ser humano do que na próxima eleição. Seja estadista, Messias.

Agora, o sr. me desculpe, mas vou ler o conto “André Louco”, de Bernardo Élis.

Com o abraço do

Brás Cubas

Euler de França Belém

É jornalista e historiador.