Atribui-se ao poeta alemão Bertolt Brecht, o vaticinado questionamento “Que tempos são estes em que temos que defender o óbvio?”. Apesar da consagração, ao longo dos séculos, da ciência e da razão, que teve como pano precursor o movimento renascentista do século 15, agora, em pleno século 21, vozes do obscurantismo vindas de todos os lados ecoam para contestar as mais importantes conquistas civilizatórias. Solenemente, o anti-intelectualismo, já denunciado pelo escritor russo-americano Isaac Asimov, tem ganhado força no Brasil, ao ponto da opinião, sobre a pandemia, de blogueiros generalistas, sem qualquer formação sobre o tema, ganhar muito mais eco e adesões do que qualquer estudo científico.
As falas sem lastro do Brasil de 2021, vociferadas nas diversas plataformas digitais e estimuladas, principalmente, por altas autoridades da República, têm ganhado tanta notoriedade e apreço que as conclusões dos expertos passaram a ser desprezadas e, muitas delas, ironicamente, objeto de chacotas digitais. A opinião dos incultos, em suma, que deveria ser motivo para constrangimento, tornou-se a matéria-prima mais buscada, consumida, divulgada e, de certa forma, idolatrada, no Brasil. O mercado da ignorância nunca esteve tão aquecido, por aqui.
Se, para Nietzsche, a ciência e seu método substituíram as explicações dos fenômenos terrenos, antes dadas pela religião, o Brasil dos últimos anos elegeu a ignorância como o sol em torno do qual se quer orbitar. A substituição é simbólica e oficial, bastando observar o desfinanciamento da ciência e tecnologia, dos últimos anos, pelo Governo Federal. É em vão, por exemplo, a atividade de divulgar estudos científicos que revelam que a cloroquina ou o remédio para piolho não têm eficácia preventiva comprovada sobre o coronavírus, pois sempre algum digital influencer aparecerá para desconstruir, mediante verborragia, agonia e sofismas, todas as conclusões dadas pelo método científico. Eles se fiam na estultice de seus destinatários, que os aplaudem, consagram e replicam. Opinar sobre tudo, sem saber de nada, é a profissão que mais ganha adeptos no país dos incultos. Usar máscara e evitar aglomeração, que são, segundo o estado da arte, atualmente, as únicas medidas preventivas mundialmente reconhecidas para evitar o contágio da maior pandemia dos últimos 100 anos, passaram a ser, simplesmente, uma questão de opinião, como se sua expressão não exigisse um ônus argumentativo honesto, a ser baseado em provas.
Aliás, a desonestidade intelectual é o grande trunfo do momento. Alguns juristas de varejo, que contam cada vez mais com seguidores miméticos, inclusive, se apresentam em redes sociais, sem qualquer constrangimento, defendendo em vídeos um suposto direito fundamental de se aglomerar e não usar máscara, como se o seu exercício não se submetesse a diversos limites constitucionais oponentes e condicionantes. Acreditam que os direitos são como refeições oferecidas em um cardápio, cuja escolha arbitrária importaria em exclusão de todos os demais pratos, deixando de lado a lição básica de que o exercício de qualquer direito impõe, necessariamente, a convivência harmônica com os demais. Não há direitos absolutos.
Ledo engano tentar explicar o óbvio, pois, conforme preocupação expressada por Ortega y Gasset, as massas, compostas pelo homem médio que não tem compromisso sincero e honesto com a vida pública, são facilmente manipuladas por líderes de ocasião e passam a querer impor suas verdades superficiais, se valendo, inclusive, da violência. Ao presenciarmos, estupefatos, o episódio da invasão ao Capitólio americano, por supremacistas brancos, e vídeos de autoridades brasileiras desestimulando o uso de máscaras, facilmente nos veio o raciocínio do pensador madrileno que, no início do século 20, em “O Ensaio Sobre a Imbecilidade”, exigiu o aprofundamento do estudo sobre o crescimento da imbecilidade humana, se não para extirpá-lo, ao menos contê-lo.
O momento é tão singular e preocupante que temos que explicar com paciência e apreensão que feijão ungido não cura e que a vacina para conter uma pandemia é fundamental, segura e de exigência coletiva. Vacinar-se para conter a pandemia jamais se refere a uma opção ou questão de opinião existencial, exatamente porque o controle da doença é uma atividade necessariamente supraindividual e sua eficácia depende de todos. Convencer parcela da elite brasileira de que a paralisação da economia não é obra do isolamento social, mas, sim, da pandemia que inibiu, por óbvio, toda a economia do mundo, transformou-se em uma atividade hercúlea e profundamente desgastante. Reconhecer que o Brasil é um país estruturalmente racista, que o governo militar foi uma ditadura criminosa e que o meio ambiente é um ativo fundamental a ser preservado passou a ser contestado vorazmente e com desdém. A busca por reescrever a história, exatamente pelas pessoas que menos a conhecem, com base em mera convicção pessoal, é incessante, progressiva e profundamente perigosa. A subversão do discurso linear da história se faz mediante a repetição de mentiras notórias e falas fáceis que, ecoadas pelos trogloditas e seu séquito, dão razão a Umberto Eco, que afirmara que as redes sociais dariam voz aos imbecis.
A superficialidade do discurso se conjuga indissociável com a disseminação de fakenews facilmente transmitida, consumida e reverberada por uma turba, se não mal intencionada, ao menos vulnerável e cada vez mais ávida por mentiras, simplesmente porque a verdade não lhe convém. A consequência inevitável é o incremento do discurso do ódio, beneficiando politicamente uma horda indolente de infames que, cada vez mais, ascendem a cargos estratégicos para retroalimentar a ignorância e a Era da Insensatez, em atenção à profecia de Nelson Rodrigues, segundo a qual: “Os idiotas vão tomar conta do mundo, não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos”. De certa forma, essa realidade que estamos assistindo, com asfixia e preocupação, responde ao questionamento de Renato Russo em “Eu Sei”, no qual indaga de forma retórica: “Um dia pretendo tentar descobrir, por que é mais forte quem sabe mentir”. Afinal, que tempos são estes?