Não faz muito tempo. Era um começo que se desenhava como prenúncio e desenlace. Maria abriu a rede social e viu brotarem, em escala progressiva de impiedade, as fotos com legenda falsa e malícia verídica. Caixões e valas estampando sobre si a informação de que ali havia pedras e não corpos. Era a disseminação sem freio e sem critério da mentira travestida de anúncio revelador. Maria viu perpetuar sob seus olhos o enredo que se prestava ao papel de diminuir a gravidade do caos e descredibilizar o luto de milhares de famílias. Maria beijou o rosto do filho em imaginação, enquanto os lábios encontravam a madeira fria separando ambos. Não pôde velar, despedir-se, tocar. E precisou, ainda, engolir como última pá de cal de seu infortúnio, o tom jocoso que tratava como farsa mortes verdadeiras.
Os caixões supostamente vazios daquele momento acomodavam os corpos de quem não conseguiu sobreviver à dramática pandemia que já se mostrava avassaladora. Mas mesmo quando a morte é concreta, visível, guardada em baús palpáveis, há quem opte por negá-la para dar ênfase ao devaneio coletivo de que nada está acontecendo. Mesmo quando tem mãe chorando de saudade e pedindo clemência, para alguns prevalece o pensamento conspirador de que tudo não passa de teatro. É a recusa da realidade, endossada por mentiras cuidadosamente editadas, fazendo o papel de criar um universo ilusório livre da tragédia e, consequentemente, de sua responsabilização pelo poder público que optou pela inércia e pela negligência. É o empenho em negar a dor para não senti-la, ainda que às custas de machucar mais quem já sofreu o bastante.
Está faltando ar. E nem os pesadelos mais pessimistas previram que, meses depois, o negacionismo e ignorância iniciais persistiriam com tanto vigor. Em cada leito que alguém tenta puxar o último respiro de sobrevivência, agoniza também a luta contra a estupidez e a maldade dos que reverberam o descaso personificado na maior liderança política do país. Em cada médico esgotado e enfermeiro combalido estão não só os desdobramentos inevitáveis que a pandemia traz, mas também a renúncia que parte da população fez em participar do combate. Em cada paciente terminal que vê a chance de viver esgotar-se em cilindros secos, está a ineficiência política e humana que nos trouxe até aqui.
Marias são muitas. Por todo o Brasil. Em Manaus, representam o simbolismo mais gritante do que estamos passando. Marias são tantas, deitadas em macas, pedindo socorro, transitando em corredores lotados, apavoradas com os aparelhos não dando conta de mais nada. Somos uma nação adoecida com um resto de esperança na cura e no esforço coletivo para que o mais tenebroso dos momentos passe e que um dia, talvez, possamos celebrar caixões de fato vazios. Não há mais tempo para negar, não há mais espaço para não reagir, não há mais margem para remédios sem comprovação, demonização da vacina, desvio de verbas em municípios e estados, deboches, desdém. Quem ainda tem pulmões fortes tem o dever de gritar.