Mulheres e clientes têm sempre razão

Mulheres e clientes têm sempre razão

A cor. A falta de cor. Andorinhas vestidas de fraque preto dão rasantes sobre a minha cabeça. Elas brincam no quintal. Nada mal morar numa casa com jardins floridos que recebe visitas constantes dos passarinhos. Eu me aninho ao som do blues porque não possuo asas. A água da piscina está parada. Pensamentos parados não movem moinhos. Quando sobrar algum dinheiro, vou colar os ladrilhos que se desprenderam, tirar um período sabático e aprender o idioma francês. Júlia não é passarinho, mas, voa de volta à Paris para mais seis meses de saudades. O verbo amar se conjuga é com os filhos, em todas as pessoas do plural. Pela internet, recebo as fotos singulares de Marilyn Monroe no auge da beleza. É a mulher mais bela que já vi. Não consigo concebê-la triste, deprimida. Morreu com a droga do coração vazio. Ando de saco cheio com as redes sociais e os neofacistas. Uma turba de anarquistas invadiu o Capitólio. As cenas são ultrajantes. Não que eu morra de amores pelos Estados Unidos, mas, sou fã incondicional de Elvis e da democracia. Não sou criança o bastante para brincar na Disney. Eu levo a vida à sério demais, isso é horrível. Lembrei-me do atentado às Torres Gêmeas. Ninguém contava com aquilo. Lembrei-me das gêmeas siamesas que se colaram em mim, num legítimo, irreparável triângulo amoroso, numa casa de veraneio, durante o último devaneio que sofri antes de ser diagnosticado como um mentiroso que tem asma nos pulmões. Tenho alergia de quem mente. Se eu contar, ninguém acredita. Se eu confundir, ninguém desata. Sou de perder o fôlego. Trocaria a falta de ar recorrente pelos surtos psicóticos permanentes. É obvio que estou blefando. Loucura não é brincadeira. A pior doença que pode acometer um ser humano é a mental, particularmente, a demência senil. Não bastasse o deplorável envelhecimento corporal, a mente se deteriora feito o pudim de leite condensado que eu esqueci na geladeira. A memória evapora. Já não se recorda o que foi comido no almoço, quem dirá, quem colocou a comida na sua boca. Certas doenças são um ultraje. Na hora de secar o bagaço, quem segura a onda é a família. Nada mais piegas do que dizer a verdade. Da varanda, examino o jardim. Há ervas daninhas por todo o gramado. Por que, simplesmente, não me levanto da cadeira e as arranco dali? Preciso contratar um jardineiro fiel para podar a grama e aparar os pensamentos negativos que brotam na solidão das horas. Gosto de fazer analogias. Amo o cinema. Mas, tenho desgostado de algumas pessoas nos últimos dois anos. Tudo começou com as acirradas eleições de 2018. Não me orgulho em admitir isso. O rancor é emagrecedor, ao menos, para mim. As tripas sofrem, tremem em espasmos bombásticos de cólera e de ansiedade, trabalhando dobrado, precisas como relógios suíços. Preciso de mais tempo para me dedicar aos pensamentos lúdicos e imprecisos, do que para a razão nua e crua. Ontem à noite, comi a minha mulher e um cardume de sushis. Nada mais vulgar do que tratar a pessoa amada como se fosse um alimento e de pedir descontos em restaurantes. O preço da comida japonesa me tira do sério. A minha gata repete que dinheiro foi feito para se gastar, que caixão não tem gavetas e coisa e tal. Nada mais conveniente do que associar a pessoa amada aos bichos. Como eu já disse, eu gosto das analogias. Eu amo os animais. Sou uma espécie de burro teimoso, se é que me entendem. Numa última tentativa, num derradeiro esforço desenfreado para não perder o irrelevante debate, eu argumento que dinheiro não aceita desaforo. Ela diz que vai tomar um banho, cavalinho. A conversa se encerra ali. E a água, parada. E a praga, crescendo. E os pensamentos, a mil. E ela, com a razão, de novo, só para variar.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.