Odeio chavões que se repetem sem uma boa razão. E tá na hora de acabar com um deles: 8 de janeiro foi o aniversário de David Bowie, falecido em 2016. E pode apostar que você leu e ouviu isso sem parar: “Davi Bowie, o camaleão do rock”. É um chavão batidíssimo, surrado. E pior: não faz o menor sentido. Calma aí, vamos usar a ciência para você entender direitinho: Camaleões são conhecidos pela capacidade de mudar de cor para se adaptar ao ambiente, certo? Bom, isso é o oposto do que Bowie fazia. Bowie não se adaptava ao ambiente. Seria mais justo dizer que o ambiente é que tinha que se esforçar para se adaptar a ele. Depois que ele inventava algo, todo mundo tentava correr atrás. Nenhum camaleão tem o poder de pintar uma árvore depois de pisar nela, tem?
Bowie não era necessariamente um inventor de novas tendências. Mas era o cara que as catalisava. Que sacava para onde estava indo a cultura pop e conseguia sintetizar o que percebia em faixas de 3, 4 minutos. Não para se adaptar. Mas para se destacar. Bowie não se camuflava como um camaleão. Quem se camufla na floresta usa roupas verdes e fica quietinho. Na floresta, Bowie usaria roxo, vermelho e laranja. Sobre sapatos plataforma. E ainda cantaria o refrão de “Heroes” para chamar a atenção. Com aqueles agudos daria para ouvir de longe.
Camaleões também mudam de cor para enfrentar oponentes, para conquistar parceiros sexuais e até para avisar parceiros das condições meteorológicas. O bicho é feio, mas é fodão, leia mais aqui. Ok, nesse sentido, Bowie foi um perfeito camaleão: um sensor ambulante que dava alertas aos outros habitantes do habitat musical. Um predador sexual. E uma besta-fera do showbiz.
Mas camaleões não se arriscam. São bichos bem pacatos, que esperam pacientemente pelas suas presas. Bowie era tudo, menos pacato. Ele inventava personagens que davam certo. E no mundo da cultura, quando você inventa um personagem bem-sucedido, você suga a fonte até a última gota. É por isso que você provavelmente vai ver “Velozes e Furiosos 15” com gente pilotando cadeiras de rodas. Já Bowie era meio suicida. Calculadamente suicida. Ele matava as galinhas dos ovos de ouro no auge do sucesso.
Foi o que ele fez com Ziggy Stardust, um de seus personagens mais famosos: um pop star alienígena andrógino, inventado no começo dos anos 1970. Com ele, Bowie foi meteoricamente ao estrelato. E galvanizou o que seria conhecido como glam rock. De novo, ele não inventou a coisa. Mas deu cara e fama a ela. Veio uma cascata de grana, drogas e fama. Tudo muito rápido. E, então, em 1973, Bowie fez o último show como o personagem. Matou a fonte do sucesso para mudar de estilo. Queridos, vamos combinar: tem que ter culhão para fazer uma coisa dessas. Arte é isso, bicho. O resto é Xuxa.
No Brasil temos artistas que tentam ser camaleônicos. E são. Mas no pior sentido. Há alguns anos, Lulu Santos aderiu ao tecno. Milênios depois de todos estarem dançando. Gilberto Gil fez “Punk da Periferia”, em 1983. Só para situar, Sid Vicious morreu em 1979. Pode apostar, Caetano ainda vai fazer um funk. Daqui uns cinco anos. Nossos camaleões são assim: camuflam com anos de atraso. Se vivessem na floresta morreriam de fome.
Por isso, tenha cuidado ao chamar Bowie de camaleão. Você pode estar dando a ele as características erradas. Melhor chamar Bowie de “sépia do rock”. Não sabe o que é isso? É um animal estranhíssimo, bizarro, que parece um neon flutuante. Veja nesse vídeo.
Ninguém sabe explicar bem esse bicho, que hipnotiza os outros. Bowie também não dá para explicar. Mesmo morto, ele ainda vai nos hipnotizar por décadas. Camaleão nenhum é capaz disso.