Infelizmente, é oficial: vivemos o Congresso Internacional premonitório de Drummond — em que se canta o medo, que esteriliza o abraço. Duzentos mil brasileiros perderam suas vidas, segundo dados oficiais, em meio à crise mundial sem precedentes que reescreveu a história; o tinteiro é sanguinolento e o pincel, de reflexões. Desde o início, a falta de seriedade e de responsabilidade foi a marca registrada em nosso território, com os agravantes tons de crueldade, inacreditáveis deboches e a construção de palco para o mais absurdo e obscuro negacionismo. O Brasil, sem margem para dúvida, não merecia o desmando e a tragédia sanitária de forma concomitante.
Há de se convir que estranho seria um resultado distinto. Desde a ruptura de afagos entre o povo e a política tradicional, com o aflorar dos sentimentos contra partidos e escândalos de corrupção, houve a margem necessária para a escalada da intolerância ideológica. O país assumiu o risco de embarcar em uma aventura fantasiosa, ao dar créditos a heróis construídos meticulosamente por contos do vigário travestidos de moralidade. Por aqui, desde então, tudo parece se resumir a um eterno “nós contra eles”. A conta, como era de se esperar, chegou com o pior dos cenários.
De março até aqui foram pelo menos três ministros na pasta da saúde: dois técnicos e um general do exército. As trocas denotam o descalabro da perdição em sua mais fiel faceta, com a clarividente falta de planejamento e a mórbida indiferença para com a evolução do problema. Como se não bastasse a balbúrdia institucionalizada, o tom de descrédito, que se iniciou com a pecha de “gripezinha”, passando pelo determinismo de “todos vamos morrer um dia” — incluindo-se, no interregno, os assustadores “e daí” e “eu não sou coveiro” — foi tomando forma transmudando de meras correntes de “tios do zap” para discurso oficial. Findou-se com o momento célebre de se questionar a necessidade mesmo de vacinas, já que havia o famigerado protocolo da cloroquina. Venceu a ignorância.
A gravidade e o índice de mortalidade da doença são indiscutíveis. Com ou sem os cuidados necessários, com ou sem isolamento social ou o extremo “lockdown”, certamente haveria perdas — duras e irreparáveis. Mas 200 mil vítimas, no universo de descrédito profilático, com o chefe do Executivo promovendo aglomerações e adotando como dogma teorias da conspiração para diminuir o vírus é, sem dúvida, um número cuja responsabilidade tem nome e sobrenome. Clarice Lispector, na crônica “Dies Irae”, afirmou que a maioria das pessoas estaria morta sem saber ou viva com charlatanismo. Nada mais atual e profético.
No mar de sangue da data em que se “comemora” 200 mil brasileiros perdidos, é de se ressaltar que também o silêncio dos coniventes e das inertes instituições da República serão lembrados. A História, com eles, certamente será implacável. No país de Drummond e Clarice, emergiu das sombras também um ignóbil — com muitos poderes e questionáveis responsabilidades. Uma fina ironia cuja coincidência trágica nem o próprio Machado de Assis poderia destilar com tamanha maestria. Enfim, nosso carma coletivo.
Foto: Altemar Alcantara/Semcom