A principal meta para 2021 é sobreviver à pandemia de boçais autoconfiantes

A principal meta para 2021 é sobreviver à pandemia de boçais autoconfiantes

O meu país tem a alma torta de um craque bêbado que cai pelas beiradas do campo e que entorta os adversários numa sequência impensável de dribles desconcertantes. Agora é tarde: antes sempre do que nunca. O gol é a razão de ser do futebol; e a liberdade, da democracia. A esperança verga, mas, não quebra; ela só vai morrer dentro de mim se for de cirrose. Eu bebo da fonte dos desiludidos. Há uma certa dose de derrotismo no meu jeito de ver o mundo; contudo, de maneira geral, posso me considerar um sujeito com expectativas optimistas, a despeito da humanidade. Não me visto com as roupas e com as armas de Jorge. Eu não sei compor. Eu não sei cantar. Vesti uma cueca amarela na noite da virada. Ficou chocante. Fiquei chocado. Neste ano, ninguém me segura: vou amado até os dentes, nem que o mundo termine num barranco onde os sonhos morram escorados.

O meu país é a terra do futebol, do gol-de-letra, dos analfabetos funcionais, dos moleques iletrados que acordam de madrugada para ir de canoa à escola. O meu país é uma saraivada de escândalos especializada em esmola, cuja nata medrosa atira moedas pela janela do carro, desinfeta as mãos com álcool 70 e anda armada para se defender dos bandidos. Saudade boa é saudade morta. É assim que eu penso. É assim que eu escrevo. Pistolas Glock de 9 milímetros não fazem justiça social, só nos aleijam um pouco mais por dentro. À espera de um milagre, esse é o país dos ribeirinhos que conhecem a fundo os mistérios da pescaria, porém, não o bastante para pescar os homens certos na rasura incerta dos dias.

O meu país é o reduto da usura, do peculato e das rotundas diferenças de classe. Parece um rio de águas pesadas, com profundas desigualdades, que segue lento, desagua no mar, mas, não mata a sede de justiça dos homens. O meu país é o calvário do trabalhador que acorda cedo, que mete rápido-gostosinho antes de sair para o trabalho, que consome quatro horas do dia se espremendo dentro de um trem, de um ônibus ou de um metrô lotado, apenas para exercer o direito constitucional de ir-e-vir em defesa do pão-nosso-de-cada-dia. Sou a favor do hífen e contra aqueles que se orgulham da própria ignorância. Tem certos dias que me dá um troço por dentro. É como se eu quisesse morrer. É como seu eu quisesse matar. Mas eu não quero morrer. Mas eu não quero matar. Os meus sonhos, apesar de malcuidados, estão quase todos vivos e eles não cogitam se defender com o mister de pistolas.

O meu país é o paraíso do samba, dos safos, da sífilis, das sínfises pubianas atacadas por verrugas. Contra a má fé não existe vacina. Estou ficando impaciente e velho. Tenho fome de tempo, mais e mais a cada dia. No meu país vive um povo feliz — só que nem tanto — uma maioria pobre e miserável, cuja principal meta para o ano que se inicia é a velha esperança de acertar os seis números da Mega-Sena da virada, e virar o jogo, e mudar de vida, e tirar o pé da lama, e deixar de ser povo para quem sabe, um dia, no final das contas, ser feliz.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.