Talvez o mantra que embala o último dia do ano precise ser diferente. Em todo 31 de dezembro, apesar dos insistentes percalços, entoamos juntos que foi bom, que o balanço é positivo, que a celebração convém e a festividade cabe. Dessa vez, porém, um gosto amargo parece atravessar, impiedoso, o desejo de vibrar. Ainda que estar vivo seja extraordinária dádiva merecedora de gratulação, ainda que tenhamos o direito de expressar alívio pelo fim simbólico de um período marcado pela angústia, parece um pouco deslocado todo entusiasmo, um pouco descabido o regozijo.
À meia noite os céus de Copacabana estarão escuros. Algumas mesas estarão vazias. O colorido dos fogos e dos sorrisos dos que partiram precocemente dará espaço à feição cinza que pintou 2020 de dor. À meia noite o peito apertará mais forte em milhares de lares, que viram 2020 sepulcrar em escala máxima tantos amores e golpear a esperança. Algumas taças estarão guardadas, alguns olhares estarão distantes. À meia noite muitos chorarão a ruptura do convívio, a interrupção abrupta da vida, o futuro ceifado. Esse 31 de dezembro carrega em si o peso de um ciclo marcado pela agonia. Estampa o desespero que conduziu dias ininterruptos de leitos lotados e covas abertas. Se a tristeza vinha a conta-gotas, dessa vez apresentou-se em enxurrada.
Tentamos amenizar o medo com serenatas em sacadas, afagos virtuais, vitamina D em cápsulas, nos iludindo que vigor e força podem vir em comprimidos sintéticos. Tentamos honrar minimamente os que tiveram seus corpos atravessados por tubos. Buscamos, de um jeito meio atrapalhado, demonstrar clemência aos que enterraram seus filhos, pais, irmãos em túmulos improvisados, sem a chance de velá-los com calma e flores, reféns da despedida seca imposta pelo vírus. Tentamos rir, usar máscaras com estampas divertidas, entoar canções em lives e, mesmo assim, prevaleceu a aflição, proveniente da incerteza do que estava por vir e da constatação do muito que já havíamos perdido.
Vivemos um ano em que guerreamos contra nossas divergências. Em que foi preciso acomodar, no mesmo patamar, o receio de perder a vida com o receio de perder o emprego, o medo de perder o ar com o medo de perder o sustento. Vivemos o negacionismo, a intolerância, o desrespeito ao luto. Foram 200 mil minutos de silêncio abafados por um “e daí?”. Foram cortinas de fumaça sobre palcos sombrios. Pessoas dançando, aos montes, na clandestinidade que lhes permitia extravasar a incapacidade de se recolher, enquanto outras se trancavam em quartos cujo porta-retratos era o último resquício de presença do parceiro que perdeu a batalha, após ser contaminado.
2020 veio como rojão sem freio e não há Iemanjá, sete ondas ou lentilhas que deem jeito nisso. Mas, ainda que 2021 venha com ares de continuidade e não de renovação, não há mal em conferir à virada a fantasia de recomeço. Afinal, a alegoria que embala de fé o ano novo tem nos dado fôlego quando o cansaço está prestes a vencer o ânimo. Não há mal, também, em agradecer a vida, a cura, a saúde, o emprego. Mas 2020, definitivamente, não é o ano do clichê que entope nossas redes com hashtags que ressaltam a resiliência e a gratidão mal elaboradas, enquanto ignoram o duro fundo do poço a que chegamos. Esse é o ano da condolência, do reconhecimento da força dos que tanto perderam. É o ano em que, ainda que tenhamos individualmente saído incólumes, deve imperar a benevolência com quem não teve a mesma sorte.