Coisas que ninguém perguntou a Paul McCartney, mas eu sim

Dentro do camarote, um garçom muito cortês ofereceu-me um Daikiri e um banco para que eu acompanhasse confortavelmente o show de Paul McCartney em Goiânia. “Meu chapa, eu deveria assistir a este evento de joelhos, mas vou ficar em pé mesmo, obrigado”, o sujeito afastou-se sorrindo da piadinha idólatra.

Por mais que o rolo compressor do tempo persista em suas sacanas engrenagens, Paul mantém o carisma, a anemia e o sex appeal. Já, já, justificarei. O que mais resta para ser dito, lido ou escrito a respeito da vida e obra deste icônico artista britânico? Por que vovô McCartney teima em não abandonar os palcos e as plateias com multidões de fãs em todo planeta?

Falta de grana? Imagina… Falta do que fazer na Melhor Idade? Definitivamente, não. O compromisso moral, interior, de manter em evidência a obra magistral da banda mais popular do universo desde que Deus estalou os dedinhos e criou o Homem? Talvez. O amor incondicional à profissão? Tá esquentando. A necessidade de se sentir vivo, querido, com espírito jovial, musicalmente produtivo? Eu creio piamente nesta última hipótese.

Gastei um bocado de anos para entender que Paul fora o mais fabuloso dentre os Quatro Fabulosos de Liverpool. Esperto desde os primórdios, John Lennon sacou que Paul era o cara, aceitando imediatamente o seu ingresso na banda, ali no finalzinho dos anos 50, após o então garoto de 15 anos ter empunhado uma guitarra com as cordas invertidas (sim, todo ser que respira música sabe que Paul é canhoto) e sapecado um rock das antigas.

Ambicioso, líder irreverente, possuidor da fama de bad boy, Lennon não podia deixar transparecer que ficara impressionado com a performance caseira do novato, afinal, o dono da banda era ele e, lógico, hierarquicamente, ninguém deveria suplantá-lo.

Pelo que consta, Paul sempre foi o mais comedido dos quatro beatles (o “moço bom”, para quem faz questão de estereótipos): o último a se casar, o último a experimentar viagens com ácido lisérgico, o último a jogar a toalha e desistir da banda, apesar de ter sido o primeiro a anunciar publicamente o fim da mesma. Como qualquer jovem celebridade que se preze, Paul era um “pegador”, embora preferisse “namorar sério”, curtindo mulheres inteligentes com tutano e, claro, bonitas. Foi assim com Jane Asher (namorada de vários anos) e Linda Eastman (esposa de vários anos, até que a morte os separasse: eita, praga de padre!).

Demorei muito tempo a compreender (e aceitar) que a mola propulsora dos Beatles, nos primórdios, fosse mesmo John Lennon, o idealizador da banda, o cara que convidou outros caras da plúmbea e inóspita Liverpool para conquistar o mundo com guitarras. Contudo, a partir de um determinado momento da carreira dos fabulosos (e que eu não saberia precisar pra vocês quando foi), Paul assumiu o papel de “colocar pilha” nos demais companheiros, entabular novos projetos, conceber os álbuns, manter a sobrevida musical, tomar pé e as rédeas das questões financeiras da banda.

Depois que os Beatles se separaram, os perfis ficaram bem mais inteligíveis. Ringo Starr continuou sendo o baterista tecnicamente competente, engraçado, carismático, mas, que não sabia cantar, muito menos, compor.

George Harrison conquistou independência criativa, soltou as amarras, desgarrou-se do imã poderoso de Lennon e McCartney, construindo uma carreira exitosa repleta de hits de cunho esotérico-humanista. Dos quatro, era o mais hábil e capacitado instrumentista.

John Lennon prosseguiu na sua trajetória irreverente e instável, constantemente atordoado pelos fantasmas da infância, da adolescência, e pela interferência abissal das drogas pesadas. Quando, finalmente, sentiu-se feliz, desintoxicado e pacificado, foi morto por um maluco na porta do Dakota Building, na bela e emblemática Nova York.

Paul nunca mais parou de produzir e ousar, reforçando a sua relevância dentro do histórico dos Beatles e da música pop. Adentrado nos 70 anos de idade, ao abrir oficialmente a turnê “Out There”, ele retorna ao Brasil para três mega-shows: Belo Horizonte, Goiânia e Fortaleza.

E é bem aqui que eu entro. De novo. Acredite se puder. Se não quiser, continue lendo mesmo assim, que a estória, além de verídica, é boa.

“Paul, você me parece pálido”, eu disse, ao abraçá-lo, assim que pisei no camarim do Estádio Serra Dourada em Goiânia. Se dependesse de mim, presentearia Paul McCartney com uma suculenta peça de picanha maturada, mas tive que me contentar mesmo com uns vidros com conservas de berinjela, pepino e pequi preparado pela tia Gerusaleta, por sinal, sua fã de carteirinha. Devia ter levado também umas cápsulas de sulfato ferroso, pois, de fato, em minha opinião de churrasqueiro pecador, Paul parecia anêmico com toda aquela estória de vegetarianismo e alimentos orgânicos.

Embora eu nunca fosse jornalista, eu era o único “jornalista autorizado” dentro daquele camarim, um enviado espacial da Revista Bula. Conforme quase todos os meus leitores já sabem, eu já estivera pessoalmente com Macca em duas ocasiões: uma vez em São Paulo (leia mais em “De como um ex-beatle estragou-me uma noite de sono”), uma vez no Rio de Janeiro (leia mais em “Revista Bula conversa com Paul McCartney”).

“Como anda a sua próstata, amigo?”, eu perguntei sinceramente preocupado com o bem estar do meu ídolo. Notei que a sua esposa Nancy não viera para o show em Goiânia, de tal sorte que um grupo de cinco ou seis moçoilas vitaminadas (certamente, não vegetarianas) de um fã clube local flutuavam nos bastidores daquele reduto magnífico repleto de comida insossa. Cacei uns canapés, em vão. Portanto, Paul parecia manter o sex appeal de outros tempos.

Eu quis saber se ele aproveitaria a curta estada em Goiás para relaxar e conhecer alguns pontos turísticos essenciais. Paul disse que não se banharia nas refrescantes cachoeiras de Pirenópolis e Alto Paraíso (regatos com água de geladeira, eu diria), pois não podia correr o risco de pegar um resfriado, uma faringite, o que comprometeria o show em Fortaleza e o início da turnê nos Estados Unidos.

Ao ser alertado que a Cidade de Goiás, outro destino goiano obrigatório, era repleta de becos e ruas calçadas com paralelepípedos, Paul declinou do convite. Setentão já não tinha mais gás para pedalar ladeira acima. “Pra baixo toda santo ajuda, pra cima o coisa toda muda…”, ele cantarolou uma marchinha de carnaval usando um português gozado, de concordância errônea, porém, muito melhor do que de alguns vereadores discursando na Câmara, provando que conhecia alguma coisa de música popular brasileira.

A cada encontro sentindo-me mais íntimo e aceito pelo Macca, curvei o corpo e arrisquei sussurrar que, do seu portfólio oficial de garotas, a atual parecia a mais baranguinha de todas. Paul balançou sobre o banquinho de couro sintético soltando uma sonora gargalhada e afirmou que já não estava lá com esta bola toda ao ponto de ficar selecionando muito o mulherame.

O tempo urgia, a vaca mugia e minha tia Gerusaleta já estava com agonia de tanto esperar por mim no camarote para juntos assistirmos ao show de Paul McCartney em Goiânia. Então, enquanto secávamos algumas xícaras de chá de mentrasto (chá de mentrasto, dizem, é ótimo para prevenir da artrose e dores nas juntas), sapequei perguntinhas insólitas elaboradas pelo meu editor surtado.

Paul continuava foda: a tudo ele respondeu valendo-se de versos e títulos de canções pinçadas de repertório próprio ou da grife musical Lennon e McCartney. Imagino que serei admoestado pela tia Gerusaleta por causa o exagero, mas é preciso confessar: fiz a entrevista de joelhos.

Eu — O Aeroporto de Goiânia já virou motivo de piada ou de vergonha. Como você conseguiu chegar até aqui, amigo?

Macca — Yellow submarine. With a little help from my friends.

Eu — Alguém por aqui te convenceu a ouvir música sertanejo-universitária?

Macca — Only mama knows: The fool on the hill.

Eu — O que responder quando uns poucos críticos enfezados afirmam que Sir Paul McCartney deveria se aposentar e parar de fazer grandes concertos como estes que você traz ao Brasil?

Macca — Baby you can drive my car. I feel fine.

Eu — Mudando de pau pra cacete, quem vai ganhar a Copa das Confederações: as confederações, os gestores corruptos ou a construção civil?

Macca — Your mother should know (risos). Don’t bother me. I don’t want to spoil the party. Don’t let me down.

Eu — A bancada ruralista do Congresso pode ter esperança de que algum dia você volte a comer carne?

Macca — Some people never know. Some people can sleep at nightime believing that love is a lie. We can work it out.

Eu — Que deputado tem razão: Jean Wyllys ou Marcos Feliciano?

Macca — Maybe I’m amazed. For no one. Free as a bird. Do you want to know a secret? You’ve got to hide your love away.

Eu — Violência, terrorismo, ameaças de confrontos nucleares entre nações… O ser humano ainda tem jeito, velho Macca?

Macca — Run for your life. Blackbird, take these broken wings and learn to fly. Boy, you gotta carry that weight, carry that weight a long time.

Eu — Paul, fala sério, papo reto, não minta pra mim, man: você por acaso não será o próprio Deus disfarçado de pop star?

Macca — From me to you: I’m a loser. Try not to cry. (risos, again)

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.