Dizem que sou pessimista. Bobagem. Sou romântico. Acredito numa humanidade melhor a cada dia, pois, afinal de contas, o tempo só corre pra frente, portanto, não é possível retroceder. Numa entrevista de Ayn Rand para Phil Donahue (ao YouTube, meninos), a velhinha, quando ainda viva, dizia que seu programa de TV favorito era “Charlie’s Angels” (As Panteras), porque, ao invés de mostrar a realidade ruim da época, contava a história de três jovens bonitas fazendo coisas impossíveis.
Velhinha batuta, dava vontade de levar pra casa e chamar de vovó. Mas é a mesma que também pôs na boca de Danny Taggart, a heroína de sua principal obra (A Revolta de Atlas), frases como: “Não estou interessada em ajudar ninguém. Estou interessada em ganhar dinheiro.”
Como eu gosto de uma encrenca, continuo querendo adotar a vovó, porque, na verdade, ser romântico ou otimista não significa ser idealista ou platônico. Dá para ser prático e objetivo ao mesmo tempo.
Então qual é o problema, cara pálida? É que, com a vigilância digital, ninguém mais pode ser prático e objetivo. Todo mundo tem que ser fofo e cheio de dúvidas na vida. Não que eu seja portador de todas as certezas da humanidade. Duvidar é muito bom, mas acreditar um pouco não tem problema, porque, se partirmos da premissa de que tudo é errado e falso, tudo também pode ser certo e verdadeiro ao mesmo tempo, não? Basta escolher.
Mas, é claro, o mundo acabou porque estamos entupidos, abafados pela necessidade da fofura. E todos esses meses entocados amplificaram o patrulhamento e as exposições moralistas que cada um de nós nervosamente desabafa nas redes.
Tenho muita pena de Nietzsche. Tanta pestana queimada para chamar Sócrates de aleijado da moral e escrachar o paulinismo de que acusou ter se transformado o cristianismo. Certamente ajudou a romper as últimas barreiras à liberdade de expressão: a moral socrático-cristã. Mas o pobre Friedrich não contava com a substituição da moral que ajudou a derrubar pela moral fofucha, aquela que pode manietar qualquer discurso que não se enquadre nos predicados do bem e do mal determinados pela turma do bem.
E assim descobrimos que existe vandalismo do bem, cerceamento de liberdade legítimo e censura bem-vinda, afinal de contas, queimar igrejas, invadir propriedade privada sem mandado para interromper festas e cancelar artistas que não se enquadram na nova moral, se for por uma boa causa, vale. Vale tudo.
Em resumo, 2020 despertou o que há de pior em nós: a capacidade de apontar o dedo para todos os defeitos dos outros, já que, sentados em nossas próprias caudas, esquecemos que elas também balançam.
Fora que perdemos tanta gente — e não posso, sob pena de incoerência, tachar de gente boa ou ruim — que nos dá mesmo a impressão de que o mundo que tínhamos antes já se foi. Neil Peart, Kobe Bryant, Kirk Douglas, Zé do Caixão, Max Von Sydow, Kenny Rogers, Little Richard, Luiz Flávio Gomes, Moraes Moreira, Aldir Blanc, Flávio Migliaccio, Jerry Stiller, Vadão, Gilberto Dimenstein, Vera Lynn (ironicamente lembrada pelo Pink Floyd em “The Wall”), Ennio Morricone, Leonardo Villar, Martha Rocha, Kelly Preston, Olivia de Havilland, Alan Parker, Chica Xavier, Pedro Casaldáliga, Arnaldo Saccomani, Chadwick Boseman, Ruth Ginsburg, Cecil Thiré, Conchata Ferrel, Sean Connery, Eddie Van Halen, Louro José, Diego Maradona, David Prowse, Eduardo Galvão, Paolo Rossi, John le Carré, Paulinho, Nicette Bruno, e contando.
A lista é grande. Lembrei aí dos mais conhecidos (por mim). E, para não ficar parecendo uma nota na sessão de obituário, paro por aqui, mas, seja por Covid ou por outra causa, não era para ter morrido tanta gente. E, se esqueci alguém de fora por falta de empatia, ou mencionei indevidamente uns outros, por não ter lugar de fala, peço, desde já, genuflexamente, minhas sinceras desculpas.
Ok, nem tão sinceras, mas é esse aqui o ponto: a coisa está tão louca hoje em dia que é preciso ter cuidado até para escolher quem mencionar ou quem não mencionar. Lembrar aquele gol de placa do jogador condenado por crime sexual é tão grave quanto defender a integridade das obras de Monteiro Lobato ou da película de “E o Vento Levou…”, pois o revisionismo chegou forte, e com ele vem a novilíngua, aquela que não pode fazer concessões a diferenças de gênero, pois meninos e meninas são só menines e um texto não pode ser um texto, deve passar a ser um texte. A propósito, outro dia vi um texto comparando “A Revolta de Atlas”, da minha vovozinha querida Ayn Rand — uma ode à liberdade de expressão e de iniciativa — com “Mein Kampf”, de Hitler. É, pois é.
E não pensem que Orwell está tão distante de acontecer, porque, quando certas pessoas já decidiram, por mim, que eu tenho raiva de pobre viajando de avião ou do filho da empregada se formando na universidade, é porque a polícia do pensamento já chegou, e ela é bem pior do que aquela imaginada em 1984, ou seja, ela não descobre o que você pensa: ela determina o que você pensa.
Comecei esse texto negando que eu seja pessimista? Continuo não sendo, mas o meu romantismo não me impede de desapontar meus diletos leitores. Foi 2020, e não o mundo, que acabou. Ano que vem voltamos com mais tragédias.