Contra a estupidez e a burrice, tomo até injeção na testa

Contra a estupidez e a burrice, tomo até injeção na testa

Já fiz muitas coisas das quais me arrependo. Uma delas foi ter ensinado o meu filho a xingar no estádio. Sim, bola fora, eu vacilei. Ninguém é perfeito. Tenho lá os meus pecadinhos. A primeira vez que o levei a uma arena de futebol, ele contava 3 anos. Quando os jogadores entraram em campo, houve uma fragorosa queima de fogos, acrescida da emissão de fumaça tóxica, com as cores oficiais do time da casa. Uma beleza. A torcida gritava ensandecida. O menino colocou as mãozinhas espalmadas sobre os ouvidos e chorou que nem criança, óbvio. Que dó. Sorte a minha que o foguetório durou apenas um minuto. Acalmei-o com pipoca, picolé, docinhos e muita conversa fiada. Nem bem terminou o primeiro tempo, ele já tinha adormecido no meu colo. O zero-a-zero no placar garantiu um sono tranquilo até o apito final do árbitro.

Com o tempo, o moleque foi tomando gosto pela coisa. Quando ainda engatinhava, tasquei no pimpolho um macacãozinho verde-esmeralda com o brasão do meu time que, a partir daquele dia, se ele não se desvirtuasse pela má influência dos tios, passaria a ser o time-do-seu-coração também. O garotão tornou-se um fiel escudeiro nos memoráveis embates futebolísticos. Nossas idas ao estádio tinham estratagemas capciosos para garantir a segurança pessoal e a integridade física, tais como chegar mais cedo do que todos e ir embora mais tarde. Sob sol ou chuva, saíamos de casa vestidos com duas camisetas. A camiseta de baixo era o uniforme oficial do time, nossa segunda pele. Por cima, para disfarçar a paixão alviverde, vestíamos uma camiseta de cor neutra, para não chamar a atenção dos trogloditas.

As crianças aprendem rápido, inclusive, as coisas que não prestam. Eles veem, escutam e repetem. Foi assim que o guri começou, desde cedo, a extravasar a frustração, espinafrando o trio de arbitragem e os atacantes dos times adversários. O moleque evoluiu depressa na falta de modos, passando dos tradicionais “Fila-da-puta”, “Burro”, “Ladrão” e “Puta-que-o-pariu”, para “Desgraçado”, “Vagabundo” e o escabroso, famigerado, infame grito de guerra “Uh, vai morrer” que, definitivamente, eram expressões inaceitáveis. Essas não fui eu quem ensinou. Juro. Ele aprendeu com a torcida organizada que, realmente, justiça seja feita, em matéria de insultos, torcia de forma bastante organizada.

Lembro-me que, durante o intervalo de um jogo, enquanto devorávamos espetinhos-de-gato, tivemos uma conversa patética, de pai para filho — nessa altura do campeonato, ele já devia ter uns 13 anos — onde concordamos que ele não usaria mais os palavrões cabeludos, primitivos. O pacto funcionou. O mais correto seria deixarmos de xingar e passarmos a nos comportar como lordes. Mas, não éramos lordes. Não passávamos de uns emergentes com IDH pífio. Éramos uma dupla de torcedores latino-americanos com sangue selvagem correndo nas veias. Tarde demais para ouvir Belchior. No fundo, no fundo, a gente queria só desopilar um pouquinho. Nenhum de nós dois era rude de verdade.    

Lá se vão dois anos desde que o novo governo, legitimado pela maioria dos votos válidos, assumiu os desígnios do país. Ainda não me acostumei com o palavreado chulo e com a falta de modos do presidente. Muitas vezes, ele se comporta como se estivesse numa arquibancada, com a cachola torpe de chope, assistindo a um FLA-FLU. Ouço discursos de ódio e chiliques oficiais carregados de impropérios; daí, fico a refletir como foi que chegamos ao ponto de escolher uma pessoa tão áspera e deseducada como líder máximo da nação. Ao se portar de forma tosca, incompatível à importância do cargo, agindo com desmesurada descompostura, estaria ele apenas jogando para a torcida? Sei lá. Essas coisas colam. Apesar da improbidade com a língua portuguesa, a popularidade dele mantém-se elevada.

Essa peste já virou uma baixaria. A chegada da segunda onda da Covid-19 anda deixando todos à beira de um ataque de nervos. E ainda temos que lidar com a fluência verbal dos beócios que fazem campanha contra as vacinas. Sinto saudades da dignidade, de voltar aos estádios para curtir uma boa partida de futebol com meu o filho, juntos, numa boa, mastigando carne de segunda e exercitando o autocontrole emocional. Ai, que vontade de gritar “Ei, juiz, vai tomar no cu”. Só que não. Já passei da fase anal. Aqui e agora vai ser só na base da gentileza. Não posso mais me comportar como se fosse um presidente da república fazendo reunião ministerial. Isso não. Parodiando Cazuza, enquanto houver pandemia, não vai haver paz de espírito, quem dirá, poesia. Que haja, pelo menos, para sempre, democracia.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.