Para começar, um hai-kai do Carlos Drummond de Andrade: “Stop, a vida parou, ou foi o automóvel?” Foi isso, isso foi 2020. A vida parou e os automóveis também. O ano foi um longo “Dia da Marmota”, com todos os dias exatamente iguais e, ainda assim, o tempo voou. Filmes foram adiados, livros não foram lançados, peças não foram encenadas e exposições não foram vistas. Foi um hiato. Uma pausa. Um branco total radiante. Muita gente especula que o futuro só terá gente entocada em casa fazendo home office, assistindo streaming e pedindo comida por aplicativo. Tudo isso vai derramar mais alguns bilhões de dólares no trilionário Vale do Silício, enquanto a periferia do capitalismo fica cada vez mais miserável e doente. Mas vamos mudar de assunto, pois isso aqui não é ficção distópica e sim uma cerimônia de premiação, bolas! Mesmo sem cinemas, teatros e livrarias, tivemos livros, filmes e séries, especialmente séries. Por isso, sejam muito bem-vindos e muito bem-vindas à sensacional entrega do Prêmio Aran para o Melhor e o Pior de 2020!
PRÊMIO: HOJE É UM NOVO DIA DE UM NOVO TEMPO
Dois livros já muito lidos, editados e reeditados renasceram em 2020. “O Médico e o Monstro”, da Antofágica, ganhou uma linda versão com ilustrações do Adão Iturrusgarai, que transformou a obra de Robert Louis Stevenson num objeto de arte. Já a Cia das Letras lançou uma nova tradução de “A Revolução dos Bichos”, agora chamada “A Fazenda dos Animais”, portanto, mais próxima do título original, “Animal Farm”. Os jornais me garantem que a antiga tradução é anticomunista e trai o texto de George Orwell, que era socialista. Como só li o livro em português — embora cobice há anos uma edição inglesa ilustrada por Ralph Steadman — não posso opinar, feito Gloria Pires. Só sei que Orwell era anti-stalinista, como todo mundo que sabe diferenciar socialismo de sociopatia. O que nos leva ao segundo prêmio da noite…
PRÊMIO: STALINDO DE MORRER
A velhice é indigna, já explicou Philip Roth, e vale tudo para se manter jovem: fazer operação plástica, comprar um Mini Cooper ou virar fã de jovens YouTubers. Caetano Veloso, um dos criadores do Tropicalismo, resolveu adotar um influencer que defende publicamente os expurgos de Joseph Stálin, o premiê da União Soviética entre 1941 e 1953. Stálin foi um ditador despótico que tinha especial prazer em censurar, prender e matar escritores e artistas que não seguiam sua cartilha cultural. Nada a ver com o Tropicalismo. Ainda bem que não existe máquina do tempo. Alguma coisa aconteceria no coração do Caetano do Passado se ele conhecesse o Caetano do Presente.
PRÊMIO: LA URSUPADORA
Um mês antes do lockdown, a autobiografia do Woody Allen foi lançada pela Arcade (depois que a Hachette cedeu à pressão para não publicar a obra). Quando soube que a editora Globo editaria o livro, decidi esperar. Só que aí a versão brasileira saiu com um título burocrático — “Woody Allen: A Autobiografia” — e uma capa preguiçosa. Só de raiva, comprei o “Apropos of Nothing”, da Arcade, que a Amazon entregou em uma semana. O livro é uma delícia. As histórias da infância no Brooklyn lembram os melhores momentos de “A Era do Rádio”, com citações aos livros, filmes e quadrinhos que moldaram a cabeça do cineasta. O trabalho como roteirista, os primeiros anos como stand-up e as experiências em Hollywood também são ótimas. Tudo com piadas que são puro Allen. Tipo: durante uma briga com a primeira mulher, que estuda filosofia, ela acaba provando que ele não existe. Tudo vai muito bem até que Allen entra na história de Mia Farrow, Soon-Yi e da acusação de pedofilia. Aí vira briga de cortiço.
Estou convencido de que o cineasta é uma vítima inocente do novo e feroz “macarthismo do Bem” que toma conta dos EUA, mas o mimimi lembra uma novela ruim da Televisa com Mia Farrow no papel de vilã com tapa-olho. Apesar disso, “Apropos of Nothing” é o lançamento literário do ano. Você sabia que Cary Grant era fã de Woody Allen e queria trabalhar num filme dele? E que “Meia-Noite em Paris”, na sua versão original jamais filmada, não se passaria em Paris, mas em Nova York e teria o ator como motorista do carro-máquina-do-tempo? O filme, no entanto, acabou financiado por empreendedores franceses, a história mudou e Grant preferiu ficar em casa. Já imaginou Cary Grant dirigido por Woody Allen? Em algum universo paralelo, esse filme precisa existir.
PRÊMIO: PRODUTO DO MEIO
Essa série é, até agora, a melhor história sobre os efeitos do #MeToo na indústria do entretenimento. Mitch Kellser (Steve Carrell, ótimo), co-apresentador de um programa matutino de notícias com Alex Levy (Jennifer Aniston, excepcional), é acusado de assediar sexualmente várias funcionárias da emissora. Mas Mitch é um cara tão bacana, tão do bem, tão legal, que você fica se perguntando se ele é, de fato, o vilão odioso que dizem que ele é. Afinal, o clima de pegação geral era conhecido e até secretamente estimulado pela emissora. E se a empresa nunca recriminou o cara, por que apenas ele foi jogado na lama e demitido sumariamente depois que as denúncias vieram a público? Sem Mitch Kellser, “The Morning Show” entra em crise e cabe a Alex Levy (Aniston) manter o barco navegando com a ajuda da nova co-host, a emocionalmente instável e profissionalmente suicida Bradleey Jackson (Reese Whiterspoon). O andamento é de novela, com muitas reviravoltas, pistas falsas, intrigas, interesses escusos e personagens moralmente dúbios, cujas ações sempre escondem um segundo propósito. “The Morning Show” é série de gente grande, escrita, interpretada e dirigida para evidenciar zonas cinzentas, em vez do simples preto no branco.
PRÊMIO: SUPER DESCONSTRUÇÃO
Depois de transformar os super-heróis em máquinas de fazer dinheiro, chegou a hora de desconstruí-los para recombiná-los e conseguir mais alguns trocados. A segunda temporada de “The Boys” (Amazon) é ainda mais cínica do que a primeira, graças à entrada em cena de Tempesta (Aya Cash), que faz enérgicas pregações contra o patriarcado, mas tem um pequeno defeito: é nazista. Já o segundo ano de “Umbrella Academy” (Netflix) traz de volta a família disfuncional de super-heróis que, além de não resolver nada, ainda provoca enormes problemas por onde passa. E, finalmente, “Doom Patrol” (Warner/ HBO Max) é a mais surrealista e nonsense das três, mas com uma virtude extra: a série nunca se leva a sério e jamais perde o bom humor. O Zeca Isnáida devia assistir todas elas para ver se aprende alguma coisa.
PRÊMIO: CHEGA DE DERIVADOS
A Netflix Brasil finalmente entregou uma série bem escrita, com grande valor de produção e que não é apenas uma variação local de séries americanas, já vistas e revistas.
PRÊMIO: TULSA HOJE É AQUI
A HBO já foi sinônimo de TV de alta qualidade, mas isso faz tempo. “Watchmen” foi uma porcaria (não acredite no Globo de Ouro ou no Emmy) e esse ano eles repetiram a fórmula com “Lovecraft Country”, que parece escrita por uma criança de dez anos. A série não tem pé nem cabeça, mas tem excesso de sangue, vísceras e racistas mágicos. Monstros saem do solo, destroçam uma dúzia de policiais e tudo fica por isso mesmo. Essas bobagens. O pior de tudo é que, assim como em “Watchmen”, “Lovecraft Country” faz referência à Tulsa de 1921, quando a Ku Klux Klan atacou uma próspera comunidade negra do Oklahoma. É um evento odioso e que precisa ser lembrado e discutido, mas não transformado em fábula, como a HBO insiste em fazer. Em “Watchmen”, Tulsa é a origem do Justiça Encapuçada, o primeiro super-herói do mundo. Em “Lovecraft Country”, os protagonistas voltam no tempo até Tulsa e alteram a história. Romantizar um ataque racista é escandaloso e só mesmo o “politicamente correto” bobinho e reaça pode achar que isso é bonito de se ver. É bem provável que o Emmy e o Globo de Ouro premiem a série justamente pelos defeitos que ela tem, assim como já fizeram com “Watchmen”. O problema dos Novos Reaças é que eles nem sabem que são reaças, coitados.
PRÊMIO: PANELA VELHA É QUE FAZ COMIDA BOA
Não existe série velha, existe apenas aquelas que você já assistiu. Com o covid nos entocando em casa feito tatus, descobri várias séries na Amazon Prime que não são exatamente novas, mas que me fizeram muito feliz no confinamento. “O Homem do Castelo Alto” é baseada no livro de Philip K. Dick sobre um universo paralelo onde o Eixo ganhou a Segunda Guerra Mundial e dividiu os Estados Unidos entre Alemanha e Japão. A série começa bem e termina boba, mas tem um ótimo vilão, John Smith (Rufus Sewell) e uma heroína linda, Juliana Crain (Alexa Davalos).
“Electric Dreams”, também baseada nos contos de Philip K. Dick, é uma “antologia” e, por isso, alguns episódios são melhores do que os outros. Mas, no conjunto, é a melhor série de ficção científica disponível no streaming.
“Penny Deadful: City of Angels” mistura bruxaria com elementos de policial noir, mas é infinitamente melhor que a “Penny Deadful” original, que era uma cópia de “A Liga Extraordinária”. A série tem a ótima Natalie Dormer fazendo quatro papeis diferentes e o esplêndido Nathan Lane como um detetive. É inacreditável que Lane seja o mesmo cara que fez “Gaiola das Loucas” e apareceu em vários episódios de “Modern Family”, mas é ele mesmo.
E, finalmente, vencendo meu preconceito contra as séries premiadas pelo Emmy, assisti “Fleabag”, da ótima Phoebe Waller-Bridge. Acredite: ela é a melhor coisa que apareceu no humor desde o surgimento de… Woody Allen? É por aí. Assista e comprove.
E para terminar: “The Marvelous Mrs Maisel”, uma fantástica dramédia sobre uma humorista stand-up nos Estados Unidos dos anos 60. Tudo é bom. Diálogos, ambientações e interpretações. Não vejo a hora de mergulhar na quarta temporada.
PRÊMIO: AUDACIOSAMENTE INDO… MAS NÃO ME CHAMA
“Star Trek: Discovery” começou ruim, ficou pior e foi promovida a detestável na terceira temporada, disponibilizada este ano. Criada em 1966 por Gene Roddenbery, a “Star Trek” original foi uma série otimista e progressista, ao mostrar um futuro instigante e desafiador para a humanidade e seus parceiros alienígenas. Nas mãos do novo showrunner da franquia, Alex Kurtzman, “Discovery” ignora tudo o que era inspirador e cria um mundo depressivo, desolado e povoado pela tripulação mais chata da galáxia. De cinco em cinco minutos, a série tem um momento cheio de emoção, com personagens soltando frases pinçadas de livros de autoajuda. É tipo um “Mário Sérgio Cortella in Space”. Como se esse abacaxi não fosse suficiente, no começo do ano estreou também “Star Trek: Picard”, outra bobagem assinada por Alex Kurtzman. Pobre Patrick Stewart. O cara está aceitando fazer qualquer coisa para garantir uma velhice tranquila. Se bobear, topa até vir ao Brasil pra fazer propaganda de “Old Eight”. Olha aí, fica a dica.
PRÊMIO: SIRENE DO APOCALIPSE
Se Deus, em sua infinita misericórdia, quiser avisar o ser humano sobre o fim do mundo, é só fazer a Pablo Vittar cantar. Todo mundo vai fugir para as montanhas e, se bobear, até a Besta do Apocalipse cancela tudo e sai correndo também. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não mooooooooorroooooooo…
PRÊMIO: DUAS TELAS
“Mank” é o melhor filme do ano, mas também pode ser o mais chato. Depende dos olhos de quem vê. Para quem gosta de história do cinema e se diverte com a hipocrisia de Hollywood, “Mank” é genial. Para quem não gosta, “Mank” é só um filme pretensioso, rodado em preto e branco por David Fincher (“O Clube da Luta”). A história gira em torno de Herman J. Mankiewicz, roteirista autodestrutivo que enchia a cara como se a Pablo Vittar estivesse anunciando o Apocalipse. Mank escreveu “O Mágico de Oz”, “Os Homens Preferem as Louras” e “Cidadão Kane”, rodado por Orson Welles em 1941.
A produção de Fincher é tipo um “making of” de “Cidadão Kane” que é, até hoje, um dos filmes mais impressionantes da história do cinema. Se fosse um livro, ele seria “Ulisses”. Só que todo mundo sabe que o autor de “Ulisses” é James Joyce, mas quando se fala de “Cidadão Kane”, há alguma controvérsia. Tem gente que defende — como Pauline Kael, a lendária crítica da revista “New Yorker” — que o verdadeiro autor é Mankiewicz e não Welles, então um jovem diretor de 23 anos. David Fincher aposta todas as fichas nessa versão. O filme acompanha do processo criativo do roteirista com flashbacks que mostram seu envolvimento com o bilionário William Randolph Hearst, inspiração para o ficcional Charles Foster Kane.
O problema é que filme, ao contrário de livro, não tem notas de rodapé, então o melhor jeito de assistir “Mank” é com o celular na mão para desvendar quem são os personagens que pululam na trama. Não se envergonhe. Sempre fui fã de “Cidadão Kane” e também assisti ao filme em duas telas. Afinal, Internet serve é pra isso mesmo.
PRÊMIO: HUMOR É SUBJETIVO
Tinha visto essa série no deck da Netflix e pensado que era mais uma barbaridade tipo “Vikings”, “Bárbaros” ou “The Witcher”. Quem me chamou a atenção para “Norsemen” foi o Carlos Willian, editor da Bula, e serei eternamente grato a ele. A série é uma espécie de “The Office” da fantasia épica. O tom é sério, dramático e as longas tomadas de rios e florestas fazem você imaginar que está vendo mais uma variação de “Game of Thrones”. Até que um dos personagens começa a falar e você entende que “Norsemen” é uma das melhores comédias dos últimos tempos. Tem uma cena muito engraçada: depois de uma batalha sangrenta, um dos guerreiros começa a matar os inimigos que agonizam no chão. Tudo vai bem, até que chega um outro viking e pergunta: “Como você sabe que está matando os caras certos?”. E o outro: “Ah, eu conheço todo mundo…”. O primeiro: “Sério? Você conhece 20 mil homens pessoalmente? Tem certeza? Esse cara aqui, por exemplo, foi meu colega de escola, a gente saía junto pra beber… e você acabou de enfiar a espada nele…”
PRÊMIO: SESSÃO DUPLA
Primeiro veja “The Crown”, depois emende com “The Windsors”, uma comédia inglesa que zoa sem piedade a família real britânica. Se em “The Crown”, o príncipe Charles é um marido infiel apaixonado pela namorada da adolescência, Camilla Parker-Bowles, em “The Windsors”, ele vira um idiota sem noção que, entre outras burradas, declara guerra à União Europeia. Camilla Parker-Bowles é uma espécie de “Madrasta da Cinderella” e Kate Middleton é uma pobre princesa “cigana” (!!) que contrai ebola e por pouco não contamina todo o norte do Reino Unido. “The Windsors” é um escracho total e você rola no chão de tanto rir. Veja, gargalhe, e descubra por que a liberdade de expressão é o bem mais precioso de uma democracia.