O escritor francês Marcel Proust gostava de jogar uma brincadeira de salão chamada “Confissões”, onde os participantes respondiam perguntas pessoais. Em sua homenagem, hoje o jogo ficou conhecido como “Questionário Proust”. A Revista Bula, depois de ter adquirido em um concorrido leilão no eBay a Tábua Ouija original do filme “O Exorcista”, entrou em contato sobrenatural com o próprio Marcel Proust, em carne, osso e ectoplasma, que, relembrando seus tempos de jornalista, assinou contrato exclusivo como nosso correspondente do outro lado da vida.
Sempre nas altas rodas aristocráticas e altas esferas celestiais, Marcel Proust entrevista a escritora nascida na Ucrânia naturalizada brasileira Clarice Lispector. Eis o encontro de dois judeus de gênio, que deram novo significado para a expressão “o povo do livro”. Com vocês, na série Entrevistas do Além, o legitimo Questionário Proust com Clarice Lispector, psicografado em javanês pelo meio médium ligeiro Ademir Luiz.
Foto: Editora Rocco/Divulgação
Marcel Proust — Mademoiselle Lispector, fala francês?
Clarice Lispector — Falo, leio e traduzo francês, embora tenha vivido primeiro em iídiche e depois em português. Você tem um cigarro?
Marcel Proust — Estou tentando parar de fumar.
Clarice Lispector — Eu também.
Marcel Proust — Mademoiselle, compromete-se a falar tudo nesta entrevista?
Clarice Lispector — Não se conta tudo, porque o tudo é um oco nada.
Marcel Proust — Clarice Lispector é bela ou é fera?
Clarice Lispector — Podia ser outra. Podia ser um homem. Felizmente, nasci mulher. E vaidosa. Prefiro que saia um bom retrato meu no jornal do que elogios literários. Tenho várias caras. Uma é quase bonita, outra é quase feia. Sou um o quê? Um quase tudo.
Marcel Proust — Encontrou-se com Deus?
Clarice Lispector — Não tenho religião, por enquanto. Na verdade, acho que Deus não sabe que existe.
Marcel Proust — E Lúcifer?
Clarice Lispector — Ainda não, mas não tenho medo. Ele que se resguarde de mim. Como eu dizia para a Lygia Fagundes Telles, mulher é que é o diabo.
Marcel Proust — Brasileira ou ucraniana?
Clarice Lispector — Sou pernambucana.
Marcel Proust — Fui muito ligado à minha mãe. O que são para mademoiselle os laços de família? O que é ser mãe?
Clarice Lispector — À medida que os filhos crescem, a mãe deve diminuir de tamanho. Mas a tendência da gente é continuar a ser enorme.
Marcel Proust — Muitos consideram sua literatura difícil de ser compreendida. Como responderia a essa crítica?
Clarice Lispector — Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento. E não me corrija. A pontuação é a respiração da frase, e minha frase respira assim. E se você me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me respeitar.
Marcel Proust — O argentino Jorge Luis Borges afirmou que sua visão de paraíso é uma biblioteca. E a sua?
Clarice Lispector — Prefiro não responder. Minha felicidade é clandestina.
Marcel Proust — E sua visão de inferno?
Clarice Lispector — Somos livres, e este é o inferno.
Marcel Proust — Qual livro levaria para uma ilha deserta?
Clarice Lispector — “Retrato do Artista Quando Jovem”, de James Joyce. Um livro que está sempre perto de meu coração selvagem.
Marcel Proust — Uma obra inesquecível?
Clarice Lispector — “Felicidade”, de Katherine Mansfield. Esse livro sou eu.
Marcel Proust — Mademoiselle, como refugiada e depois esposa de diplomata, passou por várias cidades, como Maceió, Rio de Janeiro, Lisboa, Marrocos, Nápoles entre outras. Viu algumas delas como uma cidade sitiada?
Clarice Lispector — Todas e nenhuma. Vivo no quase, no nunca e no sempre. Quase, quase e por um triz escapo.
Marcel Proust — O que é imoral?
Clarice Lispector — Verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma.
Marcel Proust — O que é mais importante para um escritor, vocação ou talento?
Clarice Lispector — Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir.
Marcel Proust — O português é mesmo a língua da solidão?
Clarice Lispector — Solidão? O que acontece é que a gente procura o outro para se livrar de si mesmo. Se isso ocorre com gente, talvez ocorra com idiomas.
Marcel Proust — E do que sente saudades?
Clarice Lispector — Sinto saudades de quem não me despedi direito, das coisas que deixei passar, de quem não tive, mas quis muito ter.
Marcel Proust — Por falar nisto, mademoiselle reencontrou-se com Lúcio Cardoso?
Clarice Lispector — Na vida éramos parecidos demais. Não fui em seu velório, nem em seu enterro ou na missa. Havia dentro de mim silêncio demais. Agora, aqui, só digo que conseguimos ser suficientemente diferentes.
Marcel Proust — O que é só para mulheres?
Clarice Lispector — O destino de uma mulher é ser mulher. Toda mulher leva um sorriso no rosto e mil segredos no coração.
Marcel Proust — Quais seus defeitos?
Clarice Lispector — Tenho tantos defeitos! Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor, às vezes parecem farpas.
Marcel Proust — O que acha de sua estátua, representada ao lado de seu querido cão Ulisses, colocada na praia do Leme na cidade do Rio de Janeiro?
Clarice Lispector — Acho que me colocaram muito longe de Drummond, fixado em Copacabana.
Marcel Proust — O que escrever significa para mademoiselle?
Clarice Lispector — Quanto não escrevo estou morta. Minha liberdade é escrever. A palavra é meu domínio sobre o mundo.
Marcel Proust — O que veio primeiro: o ovo ou a galinha?
Clarice Lispector — O ovo é a alma da galinha.
Marcel Proust — GH ou K?
Clarice Lispector — Não sei, mas há quem diga que GH esmagou Gregor Samsa.
Marcel Proust — Qual é a hora da estrela?
Clarice Lispector — Durante a noite e na madrugada elas brilham mais forte.
Marcel Proust — Soube que o músico Bob Dylan ganhou o Nobel?
Clarice Lispector — Manuel Bandeira dizia que eu era poeta. O que posso eu dizer de Bob Dylan?
Marcel Proust — Mademoiselle faleceu antes da popularização da internet. Olhando de cima e por cima, o que acha da rede?
Clarice Lispector — Acho que quem me cita precisa ler meus livros inteiros.
Marcel Proust — Leu “Em Busca do Tempo Perdido”?
Clarice Lispector — Sim, para mim foi uma aprendizagem, um livro dos prazeres.