A última pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, realizada pelo Instituto Pró-Livro, mostrou que o percentual de leitores no país diminuiu de 55% para 52% entre 2007 e 2020. Esse desinteresse da população, somado à falta de políticas públicas e ao declínio do mercado editorial, criam um cenário desafiador para a literatura brasileira. Mas há escritores que continuam resistindo, publicando obras admiráveis ao longo dos anos. A Revista Bula realizou uma enquete entre os meses de agosto e dezembro, com o objetivo de descobrir quais são, segundo os leitores, os melhores livros brasileiros publicados em 2020, em todos os gêneros. A consulta foi feita aos assinantes da nossa newsletter — via formulário de pesquisa —, que poderiam indicar entre 1 e 10 livros de autores diferentes e publicados (ou republicados com edições ampliadas) a partir do dia 1º de janeiro de 2020. Setecentos e dois participantes (702), de 26 Estados e do Distrito Federal, responderam à enquete. Os livros foram divididos em cinco categorias, de acordo com o número de indicações: +70, +50, +40, +30 e +20. As sinopses são adaptadas das utilizadas pelas editoras.
Foram citados escritores das regiões Sudeste, Sul e Nordeste. Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul foram os estados com o maior número de escritores mencionados. Clarice Lispector é a única que não nasceu no Brasil, mas veio da Ucrânia para o país ainda na infância. Em relação à idade, o mais jovem é o paulista Marcelo Vicintin, autor de “As Sobras de Ontem”, nascido em 1981; e a mais velha é Clarice Lispector (1920-1977), autora das correspondências reunidas pela jornalista Larissa Vaz na coletânea “Todas as Cartas”.
Livros que obtiveram mais de 70 indicações
Em 2015, quando a força-tarefa da Lava Jato fulminou o “clube” de empreiteiras que controlava os contratos com a Petrobrás, a Odebrecht liderava com folga o ranking das empresas de engenharia. Delatados por colaboradores da Justiça, alguns de seus principais executivos foram presos. Para tentar sobreviver à hecatombe, a organização e seus dirigentes confessaram um longo histórico de práticas escusas que abalou a República e chocou o mundo, envolvendo propinas a centenas de políticos, de prefeitos a presidentes. Emilio e Marcelo Odebrecht, pai e filho, cujo relacionamento sempre fora difícil, romperam publicamente. Neste livro sobre a glória e a desgraça da Odebrecht, Malu Gaspar desvenda as engrenagens de um sistema de corrupção que parecia inviolável, e lança luz sobre as espúrias relações entre Estado e empresas.
Uma cineasta alemã marcada por um trauma prepara um documentário sobre a violência brasileira. Os principais entrevistados são dois irmãos: Raquel, artista de 130 quilos que detesta o próprio corpo, e Alexandre, empresário que atua no ramo fitness na periferia de São Paulo. Ambos foram escolhidos por causa da repercussão mundial de uma agressão que Raquel sofreu durante um debate sobre arte e política num hotel da capital paulista. Diante das câmeras, os segredos dessa história íntima que envolve bullying na adolescência, uma disputa por herança e diferentes visões sobre temas como sexo, religião e responsabilidade individual são pontuados por flashes da história recente do país — do Plano Collor, que iniciou a ruína da família dos protagonistas, às vésperas de uma eleição que mobilizou o ódio de uma sociedade profundamente dividida.
Livros que obtiveram mais de 50 indicações
“Batendo Pasto” é o primeiro livro de poemas de Maria Lúcia Alvim (1932) após 40 anos. Guilherme Gontijo Flores e Ricardo Domeneck foram em busca das publicações e informações sobre a poeta, que é irmã de outros dois grandes nomes da poesia brasileira: Francisco Alvim e Maria Ângela Alvim, compondo a “tríade dos Alvins”. Nessa busca, a grande surpresa: Maria Lúcia Alvim confiara ao poeta Paulo Henriques Britto, há algumas décadas, o manuscrito de “Batendo Pasto”, de 1982, com a instrução de que fosse publicado apenas após a sua morte. Por meio de um esforço de convencimento e reconhecimento em vida, “Batendo Pasto” foi lançado em 2020. Maria Lúcia Alvim vive hoje em Juiz de Fora e tem 88 anos.
Livros que obtiveram mais de 40 indicações
No início do século 20, uma doença chegou ao Brasil em navios vindos da Europa. A gripe espanhola, como ficou conhecida, matou dezenas de milhares de pessoas no país e cerca de 50 milhões no mundo inteiro. Altamente contagiosa, a “influenza hespanhola” paralisou a economia e desnudou a precariedade dos serviços de saúde. Disputas políticas e atitudes negacionistas potencializaram o massacre, que vitimou sobretudo os pobres. Iludida por estatísticas maquiadas e falsas curas milagrosas, a população ficou à mercê do vírus até o súbito declínio da epidemia. A partir de um vasto acervo de fontes e imagens da época, Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling recriam o cotidiano da vida e da morte durante o reinado de terror da “gripe bailarina”, uma das maiores pandemias da história.
Cândido é especialista em piratear filmes na internet. Sua coleção de milhares é meticulosamente organizada, num sistema infalível de pastas e HDs e nomes. A ocupação de pirateiro, no entanto, é quase acidental. A profissão de Cândido é dar aulas de química em um cursinho. Curitiba ainda vive sob os efeitos das operações policiais que colocaram a cidade no centro da crise política que assola o país, efeitos que Cândido sente no seu dia a dia. É a professora bolsonarista com quem toma café num intervalo entre as aulas, são as constantes discussões que dividem amigos, é o procurador federal, enfiado nas investigações, e a mulher dele, Antônia, com quem Cândido tem um caso. Sentado em um banco de parque, sem dar notícias há dias, Cândido vê todas essas pontas de sua vida se encontrarem.
O livro acompanha o jovem estudante Pedro, que, após a morte do pai, assassinado numa desastrosa abordagem policial, sai em busca de resgatar os pertences dele, com quem nunca teve uma relação próxima. Nesta história com nuances autobiográficas, Jeferson Tenório traz à superfície um país marcado pelo racismo e por um sistema educacional falido, em um denso relato sobre as relações entre pais e filhos. O que está em jogo é a vida de um homem abalado pelas inevitáveis fraturas existenciais da sua condição de negro. Um processo de dor e de acerto de contas, mas também de redenção, superação e liberdade. Com “O Avesso da Pele”, o autor carioca Jeferson Tenório (1977) se consolida como uma das vozes mais corajosas da literatura brasileira contemporânea.
Livros que obtiveram mais de 30 indicações
Em uma manhã qualquer, a babá Maju atravessa a praça ao lado de Cora. Puxando a garota pelo braço, ela passa sorrateiramente pelo exército de branco, pega um ônibus e desaparece. Exército branco foi o nome que Fernanda, mãe de Cora, deu às babás que todos os dias lotam a praça daquele bairro de classe alta com as crianças. Nos últimos tempos, no entanto, a babá e a filha são indiferentes para Fernanda. Afundada numa crise pessoal, ela demora a perceber que Maju e Cora sumiram sem dar notícias. Ao longo do dia, tudo vai desabando. De um lado, Fernanda lida com o fracasso de seu casamento. Enquanto isso, Maju vai até a rodoviária e desaparece num ônibus com Cora. Em meio a motéis imundos e paradas insólitas, põe em ação seu plano de raptar a criança, mas imediatamente tudo sai do controle.
“Herdando Uma Biblioteca” acompanha a trajetória do menino Miguel, que lê continuamente o primeiro livro que aparece em sua casa, uma bíblia protestante, cuja tradução é considerada, por Dalton Trevisan, um dos principais estilos da língua portuguesa. “Nos momentos de depressão (descendo de uma linhagem de angustiados), eu lia os textos sagrados em busca de respostas para meus dramas”, relembra Miguel. Dessa relação com os livros, iniciada na infância, Miguel Sanches Neto constrói crônicas que revelam sua biografia. Neste sentido, a obra dialoga com “Chove Sobre Minha Infância” (2000), romance do autor que também possui elementos autobiográficos.
Neste romance, Marcelo Vicintin retrato o Brasil por meio da degradação de sua elite econômica. Dois narradores privilegiados se alternam para contar cada um a sua história. Um deles é Egydio, herdeiro de uma empresa de navegação, que cumpre pena em prisão domiciliar após ser flagrado por uma força-tarefa da Polícia Federal; a outra é Marilu, ambiciosa que vive em busca da imagem perfeita, mergulhada num presente frenético e incerto. São personagens que não buscam a simpatia do leitor, mas seu encanto está justamente no que neles há de corrompido. Nascido em 1981, em São Paulo, Marcelo Vicintin é formado em Administração e já trabalhou em várias empresas nacionais e estrangeiras. “As Sobras de Ontem” é seu primeiro livro.
Livros que obtiveram mais de 20 indicações
“Todas as cartas” reúne correspondências escritas por Clarice Lispector ao longo de sua vida. A seleção de cartas, muitas inéditas para o público, configura um acervo fundamental para compreender a trajetória literária da escritora. Ponto alto da obra, o conjunto de correspondências endereçadas aos amigos escritores tem entre os destinatários João Cabral de Melo Neto, Rubem Braga, Otto Lara Resende, Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles e Mário de Andrade. As correspondências foram organizadas por décadas — dos anos 1940 a 1970 — e contam com notas da biógrafa Teresa Montero. O volume resultou de longa pesquisa realizada pela jornalista Larissa Vaz, sob orientação de biógrafos e da família, para trazer uma visão integral da pessoa e da escritora Clarice Lispector.
Ao ler sobre a história do adolescente carioca João Pedro, morto durante uma operação policial em São Gonçalo, o escritor pernambucano Raimundo Carreiro decidiu escrever este livro com 14 contos inspirados em histórias reais. “Estão Matando os Meninos” tem três temas principais: o assassinato indiscriminado de crianças, injustiças sociais e a pandemia. “Possuído de uma dor crescente e cada vez mais dilacerante, resolvi escrever estas histórias que, em sua maioria, me chegam através do choro de pais e parentes, debruçados sobre corpos dilacerados. Escrevê-las talvez tenha sido a atitude mais dolorosa que enfrentei nesses meus 70 anos de vida. E, é claro, na minha carreira literária”, disse o autor.
Oito anos depois da publicação do célebre “Um útero é do Tamanho de um Punho”, lançado em 2012, “Canções de Atormentar” traz o olhar afiado de uma poeta que observa a si e ao mundo. No novo livro, cujo título remete a uma performance apresentada pela autora, os poemas rememoram a sua infância no Sul, com o pé de araçá plantado pela avó, relatam o esforço inútil de tentar compreender o Brasil de hoje e discutem a injustiça, o machismo e a nostalgia de uma nação que não passou de projeto. O livro reúne poemas ora ferozes, ora desiludidos, sem perder de vista a urgência, o humor e o tom incisivo que consagraram Angélica como um dos principais nomes da poesia brasileira contemporânea.