É tudo verdade. Eu descia a Detratores da Pátria. Parei num semáforo, na altura do cruzamento com a Caminhos Cruzados. O rádio tocava Queen. De repente, um carro parou sobre a faixa de pedestres, bloqueando a minha passagem. O motorista saltou com uma arma em punho. Pensa-se rápido nessas horas. Pelo espelho retrovisor, conferi que a rua estava livre. Engatei a marcha a ré e atolei o pé no acelerador. Os pneus cantaram. Freddie Mercury interpretava “Somebody to love”, uma belezura que só.
Enquanto escapava, percebi que o atirador subia a rua correndo. Parecia gorducho, fora de forma, uma barbada para o meu motor um-ponto-oito. Só escutava os estampidos do trinta-e-oito: um, dois, três, quatro, cinco. Acho que foram cinco. Ou não. Pelo vão entre os bancos, avistei uma viatura da polícia se aproximando. Pensei estou salvo. Desacelerei o carro. Parei. Desliguei o motor. Fiquei pateticamente encolhido, como um feto. Um dos policiais abriu a porta e ordenou que eu não me mexesse. Contei que tinha um maluco me perseguindo. O soldado mandou eu calar a boca, descer do veículo e colocar as mãos sobre o capô.
Fomos alcançados pelo meu algoz. Estava suado, esbaforido, claudicante. Pensei que fosse ter um troço. Mostrou a insígnia, disse que era agente da polícia civil em diligência contra um delinquente; no caso, este que lhes escreve. Valendo-se de humor negro, comentou que a pistola tinha acabado de passar por manutenção, mas, continuava a mesma porcaria de antes, já que não tinha acertado sequer um tiro. Não achei o comentário engraçado.
Naquela época, eu ainda me vestia de branco para ir ao trabalhar. Não que eu fosse um pai-de-santo. Eu era apenas um médico que dava expediente num humilde posto de doenças na periferia de Deus-dará. Expliquei que, conforme eles podiam perceber, eu vestia um uniforme branco, era um ginecologista com falanges delgadas que tinha acabado de sair do serviço, estava cansado à beça, dirigia para o domicílio ouvindo boa música, quando sofri um ataque. E mais: os meus documentos estavam dentro da carteira, no bolso traseiro da calça, lado esquerdo.
O soldado mandou eu calar a boca. Eu ia me explicar quando chegássemos à delegacia. Delegacia? Eu? Essa foi a senha para que me algemassem. Me senti dentro de um filme de quinta categoria. Tinha juntado gente pra caramba na esquina. O povo gostava de uma bela desgraça. Aproveitei a aglomeração para gritar o meu nome, para denunciar que estava sendo preso por engano e que — vai que ainda tinha gente boa no mundo —, por favor, alguém ligasse no telefone número-tal para avisar a minha família sobre aquele abuso de autoridade.
Mandaram-me calar a boca. Pode parecer mentira, mas, reconheci um rosto familiar entre a turba. A memória fica lépida nessas horas. Aquela coisa de um filme passando na cabeça da gente, sabem como é. Era o Mário. Que Mário? O irmão do João Batista. Que João Batista? Bem, o João estudou comigo na escola de medicina. Eu disse Mário, meu chapa, estou sendo preso por engano; por favor, me ajude, companheiro; estudei com o seu irmão, João Batista, na faculdade de medicina. O sujeito se escafedeu.
Colocaram-me dentro do carro que tinha atravancado o meu caminho. Havia um sujeito no banco do carona. Perguntei se ele sabia o que estava acontecendo, por que eu estava sendo preso, pois, eu era apenas um médico que atendia a mulherada num postinho de doenças do município de Deus-dará. O desconhecido mandou eu calar a boca.
Tinha um adolescente do meu lado, no banco detrás. Aparentava ter 16. Perguntei quem ele era, se ele sabia o que estava sucedendo, por que eu seguia preso pela polícia. Ele disse que eu sabia muito bem o que eu tinha feito e, óbvio, mandou eu me calar. Compreendi que estava enrascado nalguma tramoia. Não dava para me entender com aqueles estranhos. Fiquei com medo. Medo de ser torturado. Medo de ser morto. Coisas ruins que maus policiais faziam, de vez em quando.
Fui levado à presença do delegado. Era um homem magricelo, desengonçado, com tinta acaju no cabelo e que cheirava a tabaco. Jogou três folhas de cheque sobre a mesa e perguntou se eu as reconhecia. Eu disse que nunca tinha visto aqueles cheques na minha vida, que eu nem sabia por que estava algemado dentro de uma delegacia, pois, era tão somente um profissional que atendia gente pobre num humilde posto de doenças da cidade de Deus-dará; ele poderia conferir os documentos dentro da carteira, no bolso traseiro da calça, lado esquerdo.
Ele mandou eu calar a boca. Gritou que não estava ali para brincadeiras. Avisou que ia chamar rádio, jornal, televisão, acabar com a minha reputação, destruir a minha carreira como médico ginecologista; eu ia ter que me mudar do condado, quiçá, sair do país para voltar a atuar na área. Percebi que era inútil gastar saliva. Pedi para fazer um telefonema. Nos filmes policiais, o preso tinha direito a, pelo menos, um. Ordenou que um dos agentes soltasse as algemas. Meus pulsos doíam; meu orgulho, mais ainda.
Sinceramente, não me recordo para quem foi que eu disquei. Nem precisava tanto. Logo, apareceu o Mário. Que Mário? O irmão do João Batista. Que João Batista? Bem, vocês já sabem. Ele entrou na sala, mas, não me cumprimentou. Identificou-se ao delegado como sendo um advogado. Saíram os dois. Pedi para tomar um copo d’água. O escrivão mandou eu mesmo me servir. Tinha um porrete enorme, tipo cabo de machado, madeira-de-dar-em-doido, encostado num canto, perto do filtro de água. Fiquei pensando se era com aquele instrumento que persuadiam os presos a falar a verdade.
O delegado retornou. Estava mais calmo, pianinho. Sorriu com sua boca de dentes amarelos, malcuidados, separados por frisos pretos, podres, judiados pelo hábito de fumar e de humilhar pessoas. De repente, apareceu um grupo de amigos e parentes. Quase desabei. O delegado feio pediu desculpas. Reconheceu que, de fato, infelizmente, algo tinha saído errado e capturaram o sujeito errado. Apesar de tudo, ele continuava com a consciência tranquila, pois, tinha cumprido com as suas obrigações constitucionais, enquanto servidor concursado da segurança pública em Deus-dará.
Estendeu-me a mão. Não sei por que cargas d’água toquei nela. Provavelmente, por pura perplexidade. Ainda estava tonto. Por fim, ele pediu para desconsiderar o boletim de ocorrência e recomendou que eu os denunciasse na corregedoria da polícia civil, se fosse do meu interesse. Meu interesse era sumir dali.
Já era tarde da noite. Meu amor esquentava a janta. Fui tomar uma ducha, para ver se me lavava de toda aquela história escabrosa e suja. Liguei o rádio. Freddie Mercury cantava “The show must go on”.